Os tratamentos de câncer,
lúpus e até mesmo a fertilização in vitro apresentaram erros ao serem
retratados na novela
Por Nathalie Ayres
Desde maio
de 2013, alguns dos assuntos que mais têm caído na boca dos brasileiros são
doenças. Tudo por causa da novela Amor à Vida, escrita por Walcyr Carrasco e
exibida na Rede Globo no horário das 21h. A trama se passa em grande parte do
tempo dentro de um hospital em
São Paulo, o San Magno, e grande parte dos personagens são
médicos, enfermeiros ou mesmo executivos dessa instituição.
E com
tantas cenas passadas dentro do ambiente hospitalar, diversas questões de saúde
foram citadas, como lúpus, câncer, aids, cegueira, adoção de dietas não
saudáveis, entre outros... Porém, muitas vezes em nome do enredo, algumas
informações a respeito de doenças acabam não retratando fielmente a realidade,
ou passando uma impressão errônea. Por isso, separamos alguns deslizes e até
mesmo erros médicos mostrados na novela.
O lúpus da Paulinha
A personagem Paulinha (Klara Castanho) foi
diagnosticada com lúpus, doença autoimune que ataca pele, as articulações, os
rins, o cérebro e outros órgãos, normalmente a doença é caracterizada por
manchas na pele e dores e edemas nas articulações. Quando ela foi
diagnosticada, o quadro estava descontrolado e ela logo teve que fazer um
transplante de fígado. Porém, de acordo com a reumatologista Ieda Laurindo, do
Hospital das Clínicas, um transplante não seria necessário. "O lúpus acomete
o fígado com certa frequência (cerca de 20 a 50% dos casos), mas de forma subclínica,
ou seja, aparecem alterações nos exames do fígado, apenas nas enzimas que ele
produz, mas o paciente não apresenta sintomas", explica a especialista.
"Não há na literatura médica casos de transplante de fígado devido ao
lúpus, apenas um caso de uma criança, que tinha também uma hepatite autoimune
associada, o que justifica o procedimento", conclui a reumatologista.
O
autismo da Linda
A personagem Linda (Bruna Linzmeyer) tem sido
importante para mostrar na novela como o autista pode ter possibilidades como
qualquer outra pessoa. O problema é que a novela não levou em consideração que
existem graus de autismo, e a personagem não parece se encaixar em muitos
deles. "Ao que parece, o grau de habilidade de lidar com situações e
linguagem da personagem muda conforme as cenas: em algumas ela parece ter um
desenvolvimento muito atrasado, em outras parece mais avançado e, depois ela
volta a ficar como antes. Não é assim que um autista se desenvolve",
avalia a psicóloga Ana Arantes, mestre em Educação Especial
e doutora em Comportamento e Cognição.
Pelo histórico da personagem, que nunca foi à
escola e também foi educada rigidamente pela mãe, sem oportunidades de se
desenvolver, seria muito difícil ela de repente se desenvolver e progredir.
"Poderia-se dizer que Linda, partindo de um estágio de autismo
moderado-grave, rapidamente queimou etapas chegando ao final da novela como
autista leve, algo que é ilusório", comenta a psiquiatra Evelyn Vinocur,
pós-graduada em pediatria e especialista em psiquiatria clínica.
No geral, é importante que o autista seja
diagnosticado o mais cedo possível, para que com o tratamento adequado ele seja
estimulado de forma correta, de acordo com o grau de seu quadro, e possa ser
inserido na sociedade. "O cuidado é multidisciplinar, e envolve desde psicólogos
e psiquiatras até fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais e
fisioterapeutas", considera a psicóloga Ana. Com isso, o autista pode
frequentar a escola, aprender coisas novas e conviver com outras pessoas.
Outra questão que a novela polemizou foi a
questão de relacionamentos para autistas, já que Linda está vivendo uma
história de amor com o advogado Rafael (Rainer Cadete). Quem tem grau leve de
autismo pode sim lidar bem com a sexualidade e romance. Porém não é possível
determinar o grau de Linda, tudo indica que ela tenha um grau severo de
autismo, e isso inviabilizaria qualquer chance de um romance acontecer.
Fertilização
in vitro de Niko, Eron e Amarilys
O casal gay Niko (Thiago Fragoso) e Eron
(Marcelo Anthony), sonhava em ter um filho. Eles decidiram fazer uma fertilização
in vitro, mas alguém precisava gestar a criança. Niko então chamou sua amiga de
infância Amarilys (Danielle Winits) para ser a barriga solidária. O problema é
que as leis para esse tipo procedimento são muito rígidas. "O útero de
substituição ou 'barriga solidária' é autorizado para parentes de até quarto
grau, e em situações que não há tal parente, é obrigatória uma autorização ao
Conselho Regional de Medicina (CRM)", expõe o ginecologista e obstetra
Alfonso Massaguer, especialista em reprodução humana. De acordo com a resolução
CFM Nº 2013/2013, podem gestar a criança apenas a mãe, irmãs, tias, avós ou primas
de um dos membros do casal. E, ao que parece, não houve nenhuma espera de
notificação ao CRM antes de Amarilys receber o primeiro óvulo.
Outro erro grave feito na novela foi o uso dos
óvulos de Amarilys, mas isso realmente foi feito ilegalmente pela personagem,
em parceria com o médico. "É estabelecido que se usem óvulos de uma
doadora anônima, para não haver brigas sobre a maternidade ao fim do
processo", ensina Massaguer. O que realmente aconteceu na novela, já que
Amarilys quis alegar que o filho era dela.
Linfoma
de Hodgkin da Nicole
Logo no inicio da trama, a personagem Nicole
(Marina Ruy Barbosa) começou a apresentar manchas na pele e a se tratar com um
oncologista. A aposta dos telespectadores foi de que ela tivesse um câncer de
pele, mas ela foi diagnosticada com linfoma de Hodgkin, tumor que se localiza
nos glânglios linfáticos, como os presentes no pescoço. É raro, mas o problema
pode sim se manifestar na pele. "Mas para atingir a pele com manchas,
teria que ser um fase bem avançada do tumor", pondera o oncologista
clínico Vladimir Cordeiro de Lima, do AC Camargo Cancer Center. Na vida real,
antes de chegar nessa fase o paciente já teria mostrado outros sinais clássicos
da doença que iriam inclusive permitir o diagnóstico precoce. "O normal é
o paciente apresentar sintomas mais comuns como o inchaço do glânglios
linfático em 70% dos casos, e pode ter também perda de peso, sudorese
excessiva, febre persistente, fadiga, entre outros sintomas", explica o
oncologista.
Mas a parte mais grave foi o prognóstico do
médico de que Nicole teria pouco mais do que seis meses de vida, passando uma
ideia errônea sobre as chances de cura desse tipo de câncer. O linfoma de
Hodgkin é considerado um dos tipos mais curáveis de câncer, principalmente se
for diagnosticado e tratado a tempo. Diferentemente de outros tipos de câncer,
a doença de Hodgkin muitas vezes pode ser curada mesmo em estágios mais
avançados. "O linfoma de Hodgkin tem agressividade intermediária, pois se
desenvolve rapidamente, mas seu prognóstico na maioria dos casos é favorável: a
taxa de cura é muito alta", considera o especialista. Porém, não foi isso
que ocorreu com a personagem, já que ela faleceu em decorrência do tumor algum tempo
depois do diagnóstico.
Tratamento
de choque aplicado em Paloma
Em meio às reviravoltas do enredo, a
personagem Paloma (Paolla Oliveira) foi internada pelo próprio irmão Félix
(Matheus Solano) em uma clínica psiquiátrica considerada mais radical. Ela foi
falsamente diagnosticada, e a médica responsável pela instituição lhe receitou
tratamento com choques elétricos, extremamente dolorosos (a cena foi marcada
pelos gritos da personagem). De acordo com o psiquiatra Hewdy Lobo, diretor do
Vida Mental, isso não retrata a realidade desse tipo de tratamento, chamado de
eletroconvulsoterapia. "Quando possui indicação para ser realizado, esse
procedimento ocorre em centro cirúrgico com a presença tanto do médico
anestesista quanto do médico psiquiatra, que realiza a
eletroconvulsoterapia", explica o especialista.
Normalmente ela é usada em pacientes que não
podem usar medicamentos, como idosos em depressão grave, gestantes com
problemas psíquicos, pacientes com psicoses... Também pode ser uma indicação
quando a medicação não está trazendo resultados, e o paciente tem risco de
suicídio, agressão ou desnutrição. "Jamais esta é uma conduta punitiva e
sim médica, quando não há possibilidade de uso de medicações", ressalta.
"Além disso, uma instituição de saúde que aplica choques elétricos aliados
a doses de medicamentos cavalares da forma que foi aplicado à personagem
certamente está indo contra a conduta médica adequada e atuando de forma
criminosa", destaca o psiquiatra Hewdy Lobo. Na novela, nem a clínica nem
os médicos receberam qualquer tipo de penalidade por atuar da forma que foi
mostrado.
Câncer
de mama da Silvia
A personagem Silvia (Carol Castro) foi
diagnosticada com um câncer de mama, e encaminhada diretamente para uma
mastectomia, ou seja, a retirada completa da mama. Até aí, um procedimento
normal, dado que essa avaliação sempre depende do tamanho da mama e do tumor.
Porém, após a cirurgia, nenhum outro tratamento foi feito. "Na maioria dos
casos é preciso fazer um ou mais desses três tratamentos: quimioterapia,
radioterapia ou hormonioterapia", explica o oncologista clínico Vladimir
Cordeiro de Lima, do AC Camargo Cancer Center. De acordo com o médico, algumas
pacientes podem não precisar de nenhum desses tratamentos, mas é muito raro.
Porém, na trama não foi mostrado se a personagem foi analisada quanto a isso.
O
diabetes do César
O personagem César (Antônio Fagundes) ficou
cego por algum tipo de intoxicação, e ao fazer um check-up para descobrirem a
causa, foi diagnosticado um aumento na sua glicemia. Logo, ele foi
diagnosticado com diabetes tipo 2, apesar de a causa não ter ficado exatamente
clara. Por várias vezes, foi debatido por alguns capítulos pelo personagem
Lutero (Ary Fontoura) e a Paloma, respectivamente cirurgião e pediatra, o envio
de um médico para aplicar insulina no paciente. Por fim, o médico foi enviado,
mas acabou administrando um medicamento por injeção.
A novela começou tendo um deslize inicial,
logo corrigido, pois a primeira opção para o tratamento do diabetes tipo 2 não
é a insulina. Para contextualizar melhor, existem dois tipos de diabetes: o
tipo 1 ocorre porque o pâncreas não produz insulina, por isso é necessário
repor o hormônio, e o mais comum é que a pessoa desenvolva o problema até os 20
anos. "Já na maior parte dos diabéticos tipo 2 há apenas uma resistência a
ação da insulina. Por isso, geralmente o tratamento do diabetes tipo 2 é
iniciado com antidiabéticos orais", descreve a endocrinologista Denise
Ludovico, da ADJ Diabetes Brasil. Além disso, nesse processo nenhum endocrinologista
foi consultado.
Parto
da Luana (esposa do Bruno)
Dessa vez, o deslize foi justificado pelo
enredo. No primeiro capítulo Luana (Gabriela Duarte), morreu no parto, em
decorrência de eclampsia - quando ocorrem convulsões antes ou durante o parto,
precedidas por sintomas como hipertensão arterial, durante a gravidez. A
gestante já havia sido diagnosticada com a hipertensão ao longo da gravidez,
mas sua obstetra Glauce (Leona Cavalli), não tinha consigo um cardiologista na
equipe. "É importante uma equipe de retaguarda, pois se alguma complicação
ocorrer, é importante termos uma UTI e equipe médica completa para atender esta
gestante. Isto vale para qualquer mulher em pré-natal de alto risco",
considera o ginecologista e obstetra Alfonso Massaguer, especialista em
reprodução humana. Porém, a intenção da médica era justamente que Luana
morresse no parto, pois ela estava apaixonada pelo marido da grávida, Bruno
(Malvino Salvador). O segredo foi revelado ao longo da novela.
Fonte: Uol Notícias, 27/1/14.