Governo brasileiro acobertou nazistas para evitar julgamento de crimes da ditadura
Por Felix Bohr, do Der Spiegel, 27/01/2013
Na Segunda Guerra Mundial, dezenas de criminosos nazistas
foram se esconder na América do Sul. Um novo estudo revela como uma
"coalizão relutante" dos dois lados do Atlântico conseguiu por
décadas atrapalhar os esforços para caçar e levar à justiça esses criminosos.
Foi preciso apenas um número trocado - 1974 em vez de 1947 -
para Gustav Wagner ter permissão para permanecer no Brasil. Foi um mero lapso
do homem que traduziu o documento do alemão para o português que levou a
Suprema Corte do Brasil a negar o pedido da Alemanha Ocidental para extraditar
o antigo oficial da SS. E ainda assim, Wagner era acusado de cumplicidade no
assassinato de 152 mil judeus no campo de exterminação Sobibor, na Polônia
ocupada pelos alemães.
Josef Mengele, o notório médico do campo de concentração de
Auschwitz, também se beneficiou de erros e atrasos porque os policiais
franceses da Interpol, a força policial internacional com sede em Paris,
recusou-se a conduzir buscas internacionais de criminosos de guerra nazistas.
Já no caso do coronel da SS Walther Rauff, que ajudou a desenvolver as câmaras
de gás portáteis usadas para matar judeus, foi um membro do Ministério de
Relações Exteriores da Alemanha que sabotou o pedido de extradição de seu
próprio governo para o Chile por 14 meses.
Como resultado dessas falhas, esses três brutamontes
nazistas nunca foram julgados pelas cortes alemãs depois da guerra. Wagner, a
"besta" de Sobibor, morreu em São Paulo; Mengele afogou-se no Brasil e Rauff
morreu de ataque cardíaco no Chile. Das centenas de oficiais nazistas e
assassinos em massa que fugiram para a América do Sul após a rendição da
Alemanha nazista, apenas meia dúzia deles jamais
foram julgados.
Como tantos criminosos conseguiram sair sem punição, apesar
de serem claramente culpados? Esta é uma questão que deixa os acadêmicos
abismados até hoje. Seria pela falta de cooperação das autoridades da Alemanha
Ocidental? A falta de interesse por parte dos regimes da América do Sul? Havia
laços secretos e colaboração entre nazistas dos dois lados do Atlântico?
O historiador Daniel Stahl conduziu uma pesquisa nos
arquivos europeus e sul-americanos para escrever seu novo livro, chamado
"Nazi Hunt: South America's Dictatorships and the Avenging of Nazi
Crimes" (em tradução livre: "Caça aos nazistas: as ditaduras
sul-americanas e a compensação pelos crimes de guerra"). O trabalho oferece
uma resposta certeira e terrível ao que há muito se suspeita: que havia uma
ampla coalizão de pessoas – nos diferentes continentes, na justiça, nos corpos
policiais e governos- que não se dispunham a agir ou até prejudicavam a
perseguição dos criminosos nazistas por décadas.
Embargado por antigos nazistas
Stahl acredita que os motivos que levaram cada um a
participar do que ele chama de "coalizão relutante" variou muito. Os
diplomatas da Alemanha Ocidental sabotavam a caça aos nazistas por
solidariedade. Já os investigadores franceses temiam que uma cooperação pudesse
expor seus próprios passados como colaboradores nazistas. E os ditadores da
América do Sul se recusavam a extraditar antigos nazistas por preocupação que
os julgamentos de criminosos de guerra pudessem chamar atenção internacional
aos crimes que seus próprios governos estavam cometendo na época.
Não era difícil para essa coalizão torpedear a caça aos
nazistas. Inúmeros agentes –na polícia, na justiça, no governo - tinham que
trabalhar juntos para organizar e realizar os julgamentos por crime. De fato,
um pequeno erro ou uma irregularidade processual menor era suficiente para
atrapalhar a prisão dos criminosos.
Stahl não deixa dúvidas que o judiciário da Alemanha
Ocidental foi especialmente culpado de sérios lapsos. Suas descobertas
confirmam que a instituição foi negligente em sua capacidade de processar os
assassinos nazistas por décadas.
Walther Rauff, por exemplo, viajou entre a América do Sul e
Alemanha depois da guerra como representante de várias empresas e nunca
encontrou dificuldades, porque seu nome não aparecia em nenhuma das listas de
criminosos procurados. Apenas em 1961, os promotores públicos da cidade de
Hanover, no norte da Alemanha, emitiram um mandado para a prisão de Rauff por
quase 100 mil acusações de assassinato.
Encontrar o endereço de Rauff no Chile não foi problema, e o
Ministério de Relações Exteriores da Alemanha instruiu o embaixador Hans
Strack, em Santiago, a solicitar a extradição do criminoso nazista. Mas Strack,
que também tinha trabalhado no Ministério de Relações Exteriores antes de 1945,
ignorou as instruções do ministério em Bonn e permitiu que o caso se arrastasse
por 14 meses.
Apenas quando os membros da justiça em Hanover notificaram
os colegas federais que estavam "extremamente desconcertados" com o
fato de a embaixada estar tratando o caso "com tanta hesitação" que o
governo disciplinou o embaixador recalcitrante. Strack, conhecido oponente das
reparações pelos crimes da Alemanha nazista, finalmente pediu a extradição de
Rauff, que levou à sua prisão no final de 1962.
Mas então, era tarde demais para punir Rauff, porque o
homicídio prescrevia na maior parte dos países sul-americanos na época. A
Suprema Corte do Chile negou o pedido da Alemanha para extraditar o ex-coronel
da SS. Apesar dos protestos internacionais, Rauff continuou vivendo como homem
livre no Chile por décadas.
Em outros casos, uma falta de cooperação da Interpol prejudicou
a busca de nazistas. Stahl recuperou um documento particularmente revelador, as
minutas de um encontro do comitê executivo da Interpol de maio de 1962. Pouco
tempo antes, o Congresso Judeu Mundial tinha pedido à Interpol que participasse
da busca mundial por criminosos nazistas. O então secretário-geral da Interpol,
Marcel Sicot, respondeu com revolta. Por que os criminosos de guerra devem ser
julgados, teria dito o francês segundo as minutas, "quando o vitorioso
sempre impõe suas leis, de qualquer forma? Nenhuma entidade internacional
define o termo ‘criminoso de guerra’". De fato, Sicot via a perseguição
criminal de crimes nazistas como "a justiça do vitorioso".
Em 1960, houve rumores que Josef Mengele, o médico do campo
de concentração conhecido como "Anjo da Morte", estava escondido no
Brasil ou no Chile. O Ministro da Justiça Alemão aconselhou o Escritório da
Polícia Criminal Federal a conduzir uma caçada – mas sem envolver a Interpol.
As autoridades em Bonn aparentemente estavam tentando evitar incomodar os
investigadores internacionais com o caso, mas o esconderijo de Mengele nunca
foi encontrado.
Stahl atribuiu o fracasso da Interpol em prender nazistas e
seus colaboradores ao passado de muitos policiais franceses. "Como homens
do regime de Vichy, (eles) colaboraram com os nazistas até 1944", escreve
Stahl. "Eles se opunham ao julgamento de crimes nazistas".
Stahl também observa que um dos principais obstáculos para a
caçada de criminosos nazistas de fato era que os ditadores sul-americanos
queriam cobrir seus próprios crimes. No dia 22 de junho e 1979, o embaixador
alemão em Brasília escreveu que a extradição de alguém que tinha cometido
crimes de guerra quase 40 anos antes ia "reforçar os pedidos dos que
insistem que todos os crimes devem ser julgados, inclusive os cometidos pelos
militares e policiais". Um pouco antes, o governo do então chanceler
Helmut Schmidt tinha pedido a extradição de Wagner, subcomandante de Sobibor,
um pedido que os juízes da Suprema Corte do Brasil negaram.
Na Alemanha, uma nova geração tinha entrado na burocracia do
governo – e não tinha medo de usar meios não convencionais para colocar os
criminosos nazistas atrás das grades. Em 1982, a Promotoria Pública
de Munique iniciou procedimentos para pedir a extradição de Klaus Barbie,
ex-diretor da Gestapo em Lyon, França. Temendo que Barbie pudesse ser absolvido
na Alemanha por falta de evidências, os funcionários do Ministério da Justiça
pediram aos seus colegas das Relações Exteriores que sugerissem aos aliados
franceses que "eles também deveriam pedir a deportação de Barbie,
especificamente da Bolívia para a França".
Quando Paris concordou, o Ministério de Relações Exteriores
instruiu a embaixada alemã em
La Paz, capital da Bolívia, que "encorajasse tal
procedimento com os meios apropriados".
No início de 1983, Barbie foi deportado para a França. O
famoso "Açougueiro de Lyon" morreu em um hospital naquela cidade em
1991.
Traduzido do alemão por Christoph Sultan.
Fonte: Notícias
UOL, 27/01/2013.
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