Cine Familiar, situado na Praça dos Libertadores, no coração do Otávio Bonfim (Arquivo Nirez). |
Fundado pelo Frei Leopoldo, o Cine Familiar
foi um contraponto dos franciscanos menores ao Cine Odeon, localizado no Otávio
Bonfim, que projetava filmes em desacordo com a “moral e os bons costumes”,
ditados pela censura do jornal O Nordeste, nos anos trinta, do século passado.
A origem dessa empreitada foi narrada pelo
fundador, ao escrever que, em dezembro de 1935, resolvera construir, ao lado da
igreja, no parque dos meninos, um pavilhão aberto, para nele ser ensinado o
catecismo. Ele conta que, ao mesmo tempo, adquiriu um velho aparelho de cinema,
fora de uso, e quase de graça, dando em troca, apenas um pequeno aparelho de
projeção fixa.
Sua intenção era oferecer, de vez em quando,
uma pequena sessão cinematográfica aos catecúmenos; porém, verificando o grande
interesse do povo pela sétima arte, e identificando um cinema da vizinhança a
disseminar os malefícios derivados da apresentação de películas não
recomendadas pela Igreja Católica, pôs em marcha a sua empreitada.
O resultado foi satisfatório e em dezembro de
1936, ao ensejo da visitação canônica ao convento local, ele fez um acordo com
o Reverendo Pe. Provincial, quanto à destinação da renda do cine a quem em situação
de pobreza. Em agosto de 1937, Frei Leopoldo adquiriu um aparelho, de segunda
mão, capaz de projetar os filmes falados, que vinham, gradualmente,
substituindo os cinemas mudos. Posteriormente, com parte do saldo mensal
auferido pelo Cine Familiar, e parte dos donativos advindos de pessoas amigas
da cidade, ele pode juntar os recursos necessários à compra de um novo
aparelho, bom e moderno, dotando aquela casa de espetáculo de um equipamento à
altura do seu exigente público.
Na verdade, o Familiar não era um mero
cinema, como tantos outros daquela bucólica Fortaleza, pois possuía um palco
que possibilitava a encenação de peças teatrais, daí a sua pomposa denominação
Cine Teatro Familiar. Cinema era, à época, a grande opção de entretenimento
para os fortalezenses, que, febrilmente, acorriam a essas casas de exibição,
para assistir os mais variados filmes, incluindo seriados, cujos capítulos eram
passados em dias fixos.
O Familiar era qualificado como cinema
“classe média”, porque permitia ao público entrar em traje esporte, ao
contrário dos destinados às classes mais abonadas, que exigiam paletó e gravata
para o ingresso às suas dependências. Nele, no entanto, havia uma
singularidade, uma vez que era o único que projetava seus filmes quase ao ar
livre, já que suas laterais eram abertas, conferindo ao espectador uma sensação
de liberdade, que não se observava em outros cines locais.
Um traço característico dos moradores do
bairro Otávio Bonfim e, por extensão dos “habituées” do Cine Familiar, era a
religiosidade. Quando chegava a Semana Santa, a Igreja de Nossa Senhora das
Dores praticamente se vestia de luto. Os santos, nos altares, eram cobertos de
mantos roxos, denunciando a tristeza da morte, o Calvário do filho de Deus que
viera ao mundo para salvar os pecados dos homens. A partir da quinta feira
maior, começavam os atos litúrgicos. Dizia-se, então, que a quarta-feira era de
trevas. A sexta-feira era o dia mais triste, com a procissão do Senhor Morto,
em vários locais de Fortaleza. Já o sábado era de Aleluia; queimava-se o Judas
na forca e tudo virava uma pândega só. Na madrugada do domingo, começava cedo a
zoada das matracas, chamando os fiéis à missa da Ressurreição. O sino não
parava de tocar, e o povo acordava com a sensação de que a vela pascal iria
continuar ardendo por mais um ano.
Quando hoje se fala no Cine Familiar, uma das
primeiras lembranças que saltam à mente é a da quaresma, época em que as
pessoas, com especialidade as que moravam no Otávio Bonfim e adjacências,
jejuavam em casa, pedindo a Deus perdão dos seus pecados, mas, não deixavam
nunca de cumprir um ritual, que fazia parte do Calendário da Semana Santa: ir
ao Cine Familiar, assistir a Paixão de Cristo e voltar para casa com a fé
renovada, e a certeza de que a vida é uma roda, gira, gira, para, no outro ano,
essa mesma história se repetir.
Por três décadas, o Cine Familiar imperou no
Otávio Bonfim, atraindo um bom público de outros bairros de Fortaleza. Com a
marcha do tempo, deu-se a chegada da televisão, e, em consequência, a
disseminação do televisor nos lares, formando, de pronto, as legiões de
“televizinhos”; os cinemas entraram, então, em decadência financeira, vendo minguar
a sua clientela, o que levou à insolvência, em muitos casos, e à concentração
do mercado, cingindo-se a poucos grupos empresariais mais sólidos, com
tendência ao oligopólio do setor.
Em 1968, a Ordem dos Frades Menores (ofm) decidiu
fechar o Cine Familiar, que somente vinha acumulando prejuízos financeiros,
além de problemas de outra natureza. Daí, tratou de buscar soluções, para o
encerramento de suas atividades, honrando também os compromissos trabalhistas
de seu quadro funcional. Foi assim que, em 1970, com a permissão do superior da
Província de Santo Antônio, procedeu-se à concorrência pública, para o
arrendamento do Familiar, da qual saiu vencedora uma empresa, que se mostrou
desinteressada em cumprir as cláusulas contratuais previstas, desistindo do
negócio com os frades franciscanos, e até deixando transparecer que agira
apenas pelo motivo de alijar a concorrência, ao tempo da licitação.
Rompido o contrato, deu-se o melancólico fim
da obra de Frei Leopoldo. Com isso, as portas do “Familiar” foram cerradas, em
definitivo, no mês de agosto de 1971, sendo o seu prédio alugado ao Colégio
Técnico-Comercial Pe. Champagnat, que o reformou, instalando ali uma de suas
sedes escolares.
Hoje, na antiga edificação do Cine Familiar,
abriga-se o Centro de Formação Pastoral Santa Clara, onde, por meio de suas
pastorais, são prestados relevantes serviços sociais e comunitários às pessoas
residentes no Otávio Bonfim e nos bairros adjacentes.
Para os assíduos frequentadores do Cine
Familiar, restam as boas lembranças de um tempo que se foi, deixando imensas
saudades.
Quem, daquela época, passa hoje pela Praça da
Liberdade, no coração do Otávio Bonfim, a poucos metros da Avenida Bezerra de
Meneses, surpreende-se com o velho prédio, onde se instalou o Cine Familiar, e chega
a ficar mudo diante do que vê: a decadência do imóvel que ainda guarda, na
parte de cima, o nome do antigo espaço cinematográfico, embora não reste uma só
cadeira para lembrar que um dia foi exibido na tela, em cinemascope, “O Último dos Moicanos”. E é que se diz que o “acaso
não existe”.
Marcelo
Gurgel Carlos da Silva
Nascido e criado na Paróquia das Dores
* Publicado In: Diário
do Nordeste. Fortaleza, 6 de abril de 2013. Suplemento de Cultura e Literatura.
p.1.
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