segunda-feira, 15 de abril de 2013

LEMBRANÇAS DO CINE FAMILIAR

Cine Familiar, situado na Praça dos Libertadores, no coração do Otávio Bonfim (Arquivo Nirez).



Fundado pelo Frei Leopoldo, o Cine Familiar foi um contraponto dos franciscanos menores ao Cine Odeon, localizado no Otávio Bonfim, que projetava filmes em desacordo com a “moral e os bons costumes”, ditados pela censura do jornal O Nordeste, nos anos trinta, do século passado.
A origem dessa empreitada foi narrada pelo fundador, ao escrever que, em dezembro de 1935, resolvera construir, ao lado da igreja, no parque dos meninos, um pavilhão aberto, para nele ser ensinado o catecismo. Ele conta que, ao mesmo tempo, adquiriu um velho aparelho de cinema, fora de uso, e quase de graça, dando em troca, apenas um pequeno aparelho de projeção fixa.
Sua intenção era oferecer, de vez em quando, uma pequena sessão cinematográfica aos catecúmenos; porém, verificando o grande interesse do povo pela sétima arte, e identificando um cinema da vizinhança a disseminar os malefícios derivados da apresentação de películas não recomendadas pela Igreja Católica, pôs em marcha a sua empreitada.
O resultado foi satisfatório e em dezembro de 1936, ao ensejo da visitação canônica ao convento local, ele fez um acordo com o Reverendo Pe. Provincial, quanto à destinação da renda do cine a quem em situação de pobreza. Em agosto de 1937, Frei Leopoldo adquiriu um aparelho, de segunda mão, capaz de projetar os filmes falados, que vinham, gradualmente, substituindo os cinemas mudos. Posteriormente, com parte do saldo mensal auferido pelo Cine Familiar, e parte dos donativos advindos de pessoas amigas da cidade, ele pode juntar os recursos necessários à compra de um novo aparelho, bom e moderno, dotando aquela casa de espetáculo de um equipamento à altura do seu exigente público.
Na verdade, o Familiar não era um mero cinema, como tantos outros daquela bucólica Fortaleza, pois possuía um palco que possibilitava a encenação de peças teatrais, daí a sua pomposa denominação Cine Teatro Familiar. Cinema era, à época, a grande opção de entretenimento para os fortalezenses, que, febrilmente, acorriam a essas casas de exibição, para assistir os mais variados filmes, incluindo seriados, cujos capítulos eram passados em dias fixos.
O Familiar era qualificado como cinema “classe média”, porque permitia ao público entrar em traje esporte, ao contrário dos destinados às classes mais abonadas, que exigiam paletó e gravata para o ingresso às suas dependências. Nele, no entanto, havia uma singularidade, uma vez que era o único que projetava seus filmes quase ao ar livre, já que suas laterais eram abertas, conferindo ao espectador uma sensação de liberdade, que não se observava em outros cines locais.
Um traço característico dos moradores do bairro Otávio Bonfim e, por extensão dos “habituées” do Cine Familiar, era a religiosidade. Quando chegava a Semana Santa, a Igreja de Nossa Senhora das Dores praticamente se vestia de luto. Os santos, nos altares, eram cobertos de mantos roxos, denunciando a tristeza da morte, o Calvário do filho de Deus que viera ao mundo para salvar os pecados dos homens. A partir da quinta feira maior, começavam os atos litúrgicos. Dizia-se, então, que a quarta-feira era de trevas. A sexta-feira era o dia mais triste, com a procissão do Senhor Morto, em vários locais de Fortaleza. Já o sábado era de Aleluia; queimava-se o Judas na forca e tudo virava uma pândega só. Na madrugada do domingo, começava cedo a zoada das matracas, chamando os fiéis à missa da Ressurreição. O sino não parava de tocar, e o povo acordava com a sensação de que a vela pascal iria continuar ardendo por mais um ano.
Quando hoje se fala no Cine Familiar, uma das primeiras lembranças que saltam à mente é a da quaresma, época em que as pessoas, com especialidade as que moravam no Otávio Bonfim e adjacências, jejuavam em casa, pedindo a Deus perdão dos seus pecados, mas, não deixavam nunca de cumprir um ritual, que fazia parte do Calendário da Semana Santa: ir ao Cine Familiar, assistir a Paixão de Cristo e voltar para casa com a fé renovada, e a certeza de que a vida é uma roda, gira, gira, para, no outro ano, essa mesma história se repetir.
Por três décadas, o Cine Familiar imperou no Otávio Bonfim, atraindo um bom público de outros bairros de Fortaleza. Com a marcha do tempo, deu-se a chegada da televisão, e, em consequência, a disseminação do televisor nos lares, formando, de pronto, as legiões de “televizinhos”; os cinemas entraram, então, em decadência financeira, vendo minguar a sua clientela, o que levou à insolvência, em muitos casos, e à concentração do mercado, cingindo-se a poucos grupos empresariais mais sólidos, com tendência ao oligopólio do setor.
Em 1968, a Ordem dos Frades Menores (ofm) decidiu fechar o Cine Familiar, que somente vinha acumulando prejuízos financeiros, além de problemas de outra natureza. Daí, tratou de buscar soluções, para o encerramento de suas atividades, honrando também os compromissos trabalhistas de seu quadro funcional. Foi assim que, em 1970, com a permissão do superior da Província de Santo Antônio, procedeu-se à concorrência pública, para o arrendamento do Familiar, da qual saiu vencedora uma empresa, que se mostrou desinteressada em cumprir as cláusulas contratuais previstas, desistindo do negócio com os frades franciscanos, e até deixando transparecer que agira apenas pelo motivo de alijar a concorrência, ao tempo da licitação.
Rompido o contrato, deu-se o melancólico fim da obra de Frei Leopoldo. Com isso, as portas do “Familiar” foram cerradas, em definitivo, no mês de agosto de 1971, sendo o seu prédio alugado ao Colégio Técnico-Comercial Pe. Champagnat, que o reformou, instalando ali uma de suas sedes escolares.
Hoje, na antiga edificação do Cine Familiar, abriga-se o Centro de Formação Pastoral Santa Clara, onde, por meio de suas pastorais, são prestados relevantes serviços sociais e comunitários às pessoas residentes no Otávio Bonfim e nos bairros adjacentes.
Para os assíduos frequentadores do Cine Familiar, restam as boas lembranças de um tempo que se foi, deixando imensas saudades.
Quem, daquela época, passa hoje pela Praça da Liberdade, no coração do Otávio Bonfim, a poucos metros da Avenida Bezerra de Meneses, surpreende-se com o velho prédio, onde se instalou o Cine Familiar, e chega a ficar mudo diante do que vê: a decadência do imóvel que ainda guarda, na parte de cima, o nome do antigo espaço cinematográfico, embora não reste uma só cadeira para lembrar que um dia foi exibido na tela, em cinemascope, “O Último dos Moicanos”. E é que se diz que o “acaso não existe”.
Marcelo Gurgel Carlos da Silva
Nascido e criado na Paróquia das Dores
* Publicado In: Diário do Nordeste. Fortaleza, 6 de abril de 2013. Suplemento de Cultura e Literatura. p.1.

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