O Ministério da Saúde serviu de fonte para
divulgar, na revista Isto É, Ano 37, Nº 2.257, p.28, de 20 de fevereiro de
2013, valores da participação de médicos estrangeiros de alguns países:
Inglaterra (37%), EUA (35%) e Canadá (22%), como mote para denunciar a pequena
internacionalização aqui vigorante, e um prenúncio para pretextar a importação
de médicos do exterior.
Agora, decorridos pouco mais de três meses
dessa notícia, ao ensejo de sua ardorosa campanha para trazer, a qualquer
custo, médicos estrangeiros, ou formados no exterior, para preencher postos de
trabalhos médicos em pontos remotos do Brasil, onde existiria a carência desses
profissionais, o Ministério da Saúde desfralda a bandeira da baixa internacionalização
de médicos no Brasil.
A pequena participação estrangeira no
mercado de trabalho brasileiro é generalizada entre profissionais, acometendo
as mais diferentes profissões, e não apenas à Medicina, ficando claro que os
“gringos” ocupam funções diferenciadas ou mais qualificadas em certos nichos de
mercado, como no campo da alta tecnologia e da pesquisa, e cargos diretivos de
empresas, cujas matrizes situam-se no exterior. Adite-se que a presença
estrangeira é claramente expressiva entre religiosos, católicos e outras
denominações cristãs, que aqui aportam para atividade missionária.
De fato, segundo a demografia médica do
Brasil - 2013, publicada recentemente pelo Conselho Federal de Medicina, no
Brasil, do total de 388.015 médicos com registro ativo no sistema CFM/CRM,
7.284 (1,87%) graduaram-se no exterior, sendo que 64,87% são brasileiros que
saíram para estudar fora e retornaram; os outros são imigrantes que já chegaram
com seus diplomas. Todos eles cumpriram as exigências legais, revalidaram seus
diplomas e se inscreveram em algum CRM.
Os estrangeiros provêm de 53 países, mas
cerca de 95% deles são da América Latina, e quase metade ficou radicada em três
estados do Sudeste, onde justamente há maior presença de médicos, indicando que
a vinda de adventícios, naturalmente, não tem concorrido para diminuir o
desequilíbrio regional da distribuição de médicos no País.
Os três países citados, à guisa de exemplo,
foram muito mal escolhidos na referência
ministerial, porquanto, em comum, eles guardam a preservação da tradicional
“drenagem de cérebros”, pautada pela busca de imigrantes de mente privilegiada,
com sólida educação e profissionalmente capacitados, ou, quiçá, com indicativos
de genialidade, para agregar know-how aos receptores.
Além disso, eles têm particularidades que os
tornam mais receptivos à migração mais qualificada, a começar pelo largo uso da
língua inglesa. Boa parte dos médicos atuantes na Inglaterra, ditos
estrangeiros, é composta por cidadãos britânicos de outros países do Reino
Unido, ou da Commonwealth of Nations,
uma organização intergovernamental derivada sobretudo de nações dantes
abrigadas no vasto cobertor do Império Britânico, talvez um resquício do
colonialismo inglês. A ação do Department
for International Development – DFD concorre, sobremodo, para promover o
intercâmbio científico (a Medicina, inclusive), carreando muitos indivíduos para
a Inglaterra, que, apesar de anglófonos e cidadãos de sua Majestade, necessitam
da aprovação em exames de conhecimentos para se converterem em um General Practitioner (GP), correspondente ao
clínico geral no Brasil. Por outro, como a Inglaterra integra a União Europeia,
há o livre trânsito de profissionais dos distintos países formadores desse
bloco econômico, desde que se cumpram as formalidades para a obtenção da
licença de exercício da medicina.
O Canadá é um país desenvolvido, de economia
pujante, que ostenta indicadores de alto bem-estar à sua população. Tem uma
política bem definida de atrair mão de obra qualificada, no intuito de suprir
necessidades imperiosas da melhor ocupação do seu território, tão abundante de
recursos naturais. Profissionais de saúde são bem-vindos no Canadá, desde que
bem formados e sejam testados em estágios hospitalares, após criteriosa
avaliação de seleção, e quando, autorizados a trabalhar nesse país, o governo
canadense executa rigoroso e gradativo controle, determinando onde exercer e o
que pode o médico fazer, no âmbito do seu organizado Sistema de Saúde. Tem o
Canadá, a seu favor, a ampla fala do idioma de Shakespeare, mesmo na província
de Quebec.
Os Estados Unidos formam um país de larga
tradição migratória, composta de gente que “ia fazer a América”, vendo-a como a
sua terra da promissão. Hoje, é tão extensa essa presença de imigrantes e seus
descendentes, que os WASP (white,
anglo-saxon and protestant) em breve serão minoritários nos EUA. A medicina
norte-americana, não a sua questionável Saúde Pública, configura-se deveras
atrativa aos imigrantes, pois é dotada da mais apurada tecnologia, sendo
vanguarda na incorporação de procedimentos diagnósticos e terapêuticos, que
geram polpudos rendimentos aos seus doutores, em que pese os riscos advindos da
responsabilidade civil que pairam em seus profissionais de saúde.
Médicos estrangeiros são bem acolhidos na
terra do Tio Sam, condicionados às competências que possuam para sobrepujar as
difíceis barreiras interpostas na legislação e nas normas que disciplinam a
prática médica nos USA. De fato, para um médico do exterior trabalhar nos EUA,
ele precisa ser aprovado, e bem classificado, comparativamente, em complexos e
longos testes de conhecimentos, chamado de United States Medical Licensing Examination
(Exame de Licenciamento Médico nos Estados Unidos). Mais conhecido como USMLE, é um exame de múltiplas etapas (steps), pelo qual o médico é obrigado a
passar antes de ser autorizado a praticar Medicina nos EUA.
Os steps
1 e 2 são aplicados em dezenas de países, e o 3, apenas realizado nos EUA. O step 1 é a primeira etapa do processo e
tem como objetivo avaliar se estudantes de medicina ou médicos tem a capacidade
de compreender e aplicar conceitos importantes das ciências básicas para a
prática médica. Ele avalia os conhecimentos em matérias básicas da Medicina
(Anatomia, Fisiologia, Patologia, Epidemiologia etc.); o 2, tem o objetivo de
avaliar se o estudante de medicina ou médico possui conhecimentos, habilidades
e compreensão da ciência clínica essencial para a prestação de assistência ao
paciente, sob supervisão. Ele avalia o domínio em disciplinas do saber médico
no ciclo clínico (Clínica Médica, Cirurgia Geral, Toco-Ginecologia, Pediatria
etc.). O step 3 destina-se a avaliar
se o médico consegue aplicar o conhecimento e a compreensão da ciência
biomédica e clínica essencial para a prática da medicina desacompanhado. Tal
etapa ocorre em dois dias de exame, e cada dia de testes deve ser concluído
dentro de oito horas, e, diferentemente das etapas 1 e 2, ao step 3 somente podem se sujeitar os já
graduados ou bacharelados em Medicina.
Quando muito bem sucedidos nesses steps, os estrangeiros, em igualdade de
condições aos médicos norte-americanos, aplicam às vagas ofertadas para fellow ou medical residency em hospitais credenciados para formação de
especialistas médicos. Ao lado de elevados escores nos steps, é exigido do médico estrangeiro, que queira estagiar nos
EUA, um excelente resultado no TOEFL, ratificando a proficiência no inglês. No
geral, esses treinamentos consomem cinco longos e extenuantes anos da vida
médica. Depois disso, para os que desejam exercer a Medicina nos EUA, serão
cobradas as aprovações nos boards das
especialidades e o cumprimento de atividades de educação continuada.
É do conhecimento, no meio médico, de que
médicos brasileiros que conseguem estagiar nos EUA ficam entre os mais
estudiosos das turmas, distinguidos entre os mais brilhantes; os que logram se
radicar naquele país, possuem, ademais, outros atributos, como a determinação e
a competitividade, conformando-lhes uma indiscutível competência.
O que o governo brasileiro vem advogando, em
prol da nossa internacionalização da Medicina, é a mera importação de médicos
estrangeiros, subutilizados ou desempregados em seus países de origem, sem
passar por quaisquer crivos avaliativos de conhecimento, como quem busca o
rebotalho, o que sobra, até porque está ao desabrigo profissional, devido à
insuficiência técnica ou à desatualização técnica.
Em uma ousada comparação com os irmãos
americanos do norte, no tocante aos respectivos períodos coloniais, até parece
que vamos confrontar os ingleses emigrantes do Mayflower com os aventureiros e
degredados portugueses, aportados nesta terra dos papagaios, ou cotejar os
pioneiros da América com os bandeirantes brasileiros.
Creio que nossa gente é digna de algo
melhor. Se teremos que importar médicos, o que é pouco justificável, que se
faça com a boa qualidade, aferida a partir do Revalida, e complementada por
outros predicados da formação e da experiência médicas, e sem se descuidar da
fluência daquela língua, cognominada de a “Última flor do Lácio, inculta e bela”.
Marcelo Gurgel Carlos da Silva
Professor titular de Saúde Pública-Uece
* Publicado In:
Conselho, 100: 6, julho-agosto de 2013. (Informativo do Conselho Regional de
Medicina do Estado do Ceará).
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