sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Cheiro de Saudade: três meses de falecimento de Elsie Studart



CHEIRO DE SAUDADE
Por Elsie Studart Gurgel de Oliveira
No final da década de 1950, começo de 1960, a Praça Clóvis Bevilácqua era conhecida como Praça da Bandeira; o verde das árvores centenárias não fora ainda substituído pelo cinza do concreto – obra e graça do Prefeito José Walter, mais preocupado em construir uma mega cisterna subterrânea para abastecimento d’água à população de Fortaleza, do que mesmo em preservar o meio-ambiente, até porque, àquela época, ecologia não fazia parte dos assuntos do dia, nem das políticas de governo.
A Faculdade de Direito pontificava no quadrilátero da praça, como celeiro de inteligência. Ali se formava a intelectualidade do Estado, mercê das aulas sábias dos eméritos catedráticos da antiga Salamanca. Conhecia-se um aluno do curso, pelo uso do paletó, pela bagagem de livros trazidos debaixo do braço, e, não raro pelos óculos de lentes grossas que denunciavam cansaço de visão, pelas horas consumidas na leitura dos códigos e outros instrumentos jurídicos.
Bem ao lado da praça, entre as ruas Clarindo de Queiroz e Meton de Alencar, ficava o CEU – Clube dos Estudantes Universitários, na verdade, um pedacinho do céu, transmudado para a Rua Senador Pompeu, uma das artérias mais importantes da capital, nos idos de 1950/60.
No local, funcionava o Restaurante Universitário, ponto certo dos estudantes que não tinham familiares na cidade, e ali iam se servir de comida boa e barata. Outros, procuravam o CEU para estudar, sendo comum a freqüência de alunos, de cursos diferentes, que se reuniam para realizar trabalhos, repassar informações, discutir matéria relativa às aulas e/ou mesmo questões de interesse particular.
Mas o bom mesmo do CEU, eram as tertúlias das sextas-feiras, iniciadas por volta das nove, dez horas, e prolongando-se até depois da meia-noite. Havia até um conjunto, formado pelo José Almar, da Agronomia, Vicente Vieira e Afrodísio Pamplona, da Engenharia, Anchieta Mendes, do Curso de Direito, Paulo Picanço e Maurício Benevides, da Medicina (esses os nomes guardados na minha memória).
Era tempo de Ray Connif, das músicas do Elvis Presley, do Pat Boone, do Nat King Cole, isso sem falar dos boleros tradicionais que eram, verdadeiramente, o must, dentro daquele universo onde a juventude se divertia, saudavelmente, sem apelar para o consumo de drogas, restritas quase sempre ao uso do cigarro e da bebida. No máximo, algumas doses de cuba libre (rum e coca-cola), umas tomadas de gim, vodka e uma boa quantidade de cerveja rolando, para levantar o ânimo do pessoal. O cheiro do cigarro não deixava por menos: Continental, Hollywood, Minister, faziam a festa, ou melhor, o fumacê, sem ninguém questionar o tabagismo, se o fumo dava ou não alergia, se provocava câncer, porque, afinal, o que todos queriam, mesmo, era apenas diversão.
O rock já ensaiava os seus passos, mas, no CEU, o que pesava, de fato, eram as baladas românticas, do tipo Besame Mucho, Solamente una Vez, Petite Fleur, Mona Lisa, Over the Rainbow, Perfídia, Fascinação e tantas outras. De vez em quando, uma música apressada, como o Gavião Malvado, para sacudir a galera (este termo, por sinal, não fazia parte do vocabulário dos frequentadores do clube).
Aos poucos, a Bossa Nova foi chegando, e logo dominou o espaço, das noites de sexta-feira, por conta da sua identificação com o perfil da juventude universitária, de então. Samba de uma Nota Só, Desafinado, Lobo-Mau, começaram, de pronto, a ganhar corpo na interpretação do conjunto que apelava, também, para as performances maravilhosas de Vicente Vieira, no piano, de Anchieta Mendes, no saxofone, e de Maurício Benevides, o crooner da vez.
Nesse meio-tempo, muitos namoros se fizeram, debaixo do céu estrelado (o dancing era ao ar livre), muitos amores cresceram, e como não poderia deixar de acontecer, muitos relações foram cortadas e muitos corações saíram partidos. Uma das razões disso é que boa quantidade de estudantes procedia do interior, e tão logo concluído o curso universitário, eles retornavam às suas origens, ou iam buscar emprego, fora do Estado. Daí, o rompimento ser só uma questão de tempo e de oportunidade.
Era interessante como se conseguia aliar a figura de estudante, à sua faculdade. Quem, por exemplo, fazia agronomia, diferenciava-se de quem fazia direito, só pelo modo de vestir. Calças jeans, para os futuros causídicos, nesse caso, nem pensar;  calças do tipo far west, ou US Top, ficavam para quem mexia com as coisas do campo; já o pessoal da engenharia, passava um ar de seriedade, dando a impressão de que vivia com régua e compasso na cabeça.
Um fato que chamava atenção, à época, era o código de honra, mantido na antiga escola de engenharia. Ninguém colava. Todos tinham consciência das suas responsabilidades, e, portanto, ali, era totalmente descartada a presença de fiscal.
Arquitetura só veio depois, criando-se então um nicho de inteligências meio que tangenciosas, com relação à ortodoxia dos costumes, mas bem antenadas com a política e com a arte.
Quem era da Farmácia e da Odontologia limitava-se mais a estudar do que a formar uma casta, como acontecia com os acadêmicos de medicina, espaçosos em suas atitudes, e muito cheios de estilo, sempre olhando de cima, de salto alto, como era comum se dizer. Os alunos da Economia não tinham o vezo da exibição. Eles sabiam que terminado o curso, não haveria dificuldade maior para a sua absorção pelos bancos oficiais, pela SUDEC, pela SUDENE, pelo DNOCS, até pelo fato de o momento brasileiro ser propício às grandes iniciativas de projetos que careciam da mão-de-obra dessa categoria.
Muito embora não fizessem parte desse bloco universitário, os cursos de enfermagem e de serviço social eram bastante prestigiados, mais ainda no CEU, por conta do gênero, já que a freqüência era totalmente feminina. Havia também o pessoal da Pedagogia, que trazia no seu bojo um componente de religiosidade, em muito porque da clientela participavam ex-seminaristas, além de professores interessados, de fato, em regularizar a situação de educador, o que não deixava, como ainda não deixa de ser, um sacerdócio. Os que tinham uma queda por português, francês, espanhol, escolhiam línguas neolatinas; os que preferiam inglês e alemão iam para as anglogermânicas.
No final das contas, eram todos jovens universitários, sedentos de conhecimento, mas, também, de diversão, nas noites de sexta-feira do CEU. O mesmo pessoal que freqüentava aquele reduto, era geralmente encontrado nas manhãs domingueiras do Comercial, do Massapeense, do Iate Clube e, ainda, nas tertúlias do Maguari, nas noites de domingo, embaladas por Ivanildo e seu Conjunto.
À época dos jogos universitários, tudo virava festa. Primeiro, os desfiles em carro aberto, pelas ruas do centro, com atletas e simpatizantes fazendo muito alarido, sem dúvida nenhuma estimulados pelo álcool, que corria à solta, nesses acontecimentos, muito embora não fossem registradas ocorrências que iriam ilustrar as páginas policiais.
O clima era, na verdade, de competição, mas tudo sem descambar para a violência. Ao final do certame, que durava toda uma semana, era eleita a Rainha dos Jogos Universitários. E tome festa. E tome bebida, porque, afinal, ninguém era de ferro.
Por outro lado, havia uma legião de estudantes, cursando algumas dessas faculdades, vocacionados para as coisas além da matéria. De um modo geral, eles compunham o grupo da JUC - Juventude Universitária Católica, que independia do curso freqüentado, e que tinha o foco centrado na discussão de assuntos relacionados à fé, e ao exercício de atividades de cunho nitidamente social.
O CEU era, realmente, um espaço democrático, onde se juntavam todas as tribos, com um único propósito: diversão, sem preocupação com dinheiro, com violência, com má-falação. A linguagem era um só: a do viver em paz, feito menino-passarinho com vontade de voar. É que os ouvidos pareciam estar acostumados a um mesmo tipo de música, sem apelação. As moças, como era o costume, de então, ficavam sentadas na mureta baixa, que rodeava o dancing, à espera do convite para dançar. E quando iam para a pista, deixavam-se levar, mais pela canção, do que mesmo pela cantada dos parceiros, já que ontem, como agora, a oportunidade faz o ladrão.
E lá se vão mais de 50 anos do Clube dos Estudantes Universitários, na Praça da Bandeira. Mais de cinco décadas também de bossa-nova, com João Gilberto cantando baixinho e compassado: “Eis aqui este sambinha, feito de uma vista só”. No meio de toda essa história, vivida e contada, os anos de chumbo. O tempo passou e não dá mais para se dizer: fotografei você, com a minha rolley-flex. Tudo isso vai para o baú das memórias. Mas, “Chega de saudade! como a vida precisa ser reinventada, no dizer de Cecília Meireles, nada como pegar uma gravação nova, pensando no vinil da Nara Leão, que ficou guardado na estante, até que tomaram emprestado e não mais devolveram.
Isso, com certeza, vai fazer lembrar dos bons tempos do CEU, quando se cantava e dançava “Manhã de luz, festa do sol”, sem preocupação alguma com o que pudesse acontecer.
O mais importante, para quem ia ali, era ver aquele céu descoberto, era ouvir aquele som sem ferir os ouvidos, era se deixar embalar pela canção de Consuelo Velasquez: “como se fuera aquella noche, la ultima vez”.
* Publicado In: SOBRAMES – CEARÁ. Letras que curam. Fortaleza: Sobrames-CE/Expressão, 2013. 328p. p.79-82.
Nota do Blog: É com imensa saudade que registramos os três meses de falecimento de D. Elsie Studart. Como editor da antologia da Sobrames de 2013, incluímos esse texto de Elsie, prenhe de lembranças dos tempos universitários, dos anos sessenta, como uma forma de homenagem dos sobramistas cearenses a essa tão brilhante escritora, cuja modéstia a levava a fugir dos holofotes e das badalações.
Marcelo Gurgel Carlos da Silva

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