sexta-feira, 13 de março de 2015

UMA LEMBRANÇA DA INFÂNCIA - Pão com Molho



Meraldo Zisman (*)
Médico-Psicoterapeuta
Andava eu pelos meus oito anos de idade, éramos pobres e morávamos em uma modesta rua sem pavimentação, ironicamente denominada Rua da Alegria, no bairro da Boa Vista (Recife).
Quando eu chegava da escola um pouco mais cedo do que de costume, sentia o cheiro de carne guisada sendo preparada para o almoço. Mãezinha abria, então, um pão francês dormido, cortava-o ao meio, no comprimento, passava cada uma das partes naquele molho fervente e me dava para comer, pedindo que eu esperasse a hora da refeição. Esse molho possuía um gosto especial que somente o paladar de uma criança é capaz de sentir. Delícia!
A comida em minha casa (de porta e janela) não era muita. Vim aprender mais tarde, lendo os livros de Josué de Castro, que a fome de cada um é egoísta e pouco se importa com fomes dos demais. E que menino pobre tem falta de apetite somente quando não há comida em casa.
Certa manhã, ao voltar da escola, eu vi, sentada na calçada de minha casa, uma senhora e um menino maltrapilhos, bem magros, com a pele cor de ocre, típica dos pobres do Nordeste. Não saberia dizer se eles eram morenos desbotados ou brancos encardidos. Em suma, ambos tinham a idade e a cor da necessidade. O menino podia ter, no máximo, a minha idade; mas, a mãe era tão velha quanto à fome...
Naqueles tempos, pobre era realmente pobre e a fome não era falsificada. Ademais, não se alugava crianças para enganar a caridade pública. Cola de sapateiro servia, apenas, para se colar as solas dos sapatos, pois só nas festas de Natal é que se tinha direito a um par de “pisante” novo.
Nos dias de quinta-feira, lá em casa, comia-se carne assada. Quando cheguei da escola naquele dia, fui logo gritando: Mãe, cheguei! Cadê meu pão com molho? E ela respondeu: -'Já vai, meu filho, deixa de pressa! Primeiro, vá lavar as mãos e vem me dar um beijo!'
Obedeci às ordens e agarrei o pão, com o molho a escorrer. Mas, quando ia dar a primeira dentada, lembrei-me do menino da calçada. Abri a porta da frente e estendi-lhe a comida. O menino pulou de alegria, com os olhos repletos de fome.
Entrei em casa e fui chorar no quarto. Desconfiada, minha mãe me perguntou: -‘Filhinho, o que foi que aconteceu?’ Eu respondi: -‘Nada mãe, me deu vontade de chorar e pronto’. Ouvi quando ela falou bem baixinho: -‘Esse menino é muito sensível, ainda vai sofrer muito na vida!’
(*) Professor Titular da Pediatria da Universidade de Pernambuco. Psicoterapeuta. Membro da Sobrames/PE, da União Brasileira de Escritores (UBE) e da Academia Brasileira de Escritores Médicos (ABRAMES).

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