sexta-feira, 1 de maio de 2015

ORAÇÃO DOS FILHOS DE AUDÍFAX RIOS



Com uma carta emocionada, os filhos de Audifax se despediram do pai. O Vida & Arte reproduz trechos do texto como homenagem. (*)
Dizem os antigos, em sua sabedoria, que o sofrimento e a impermanência são as marcas da vida do homem sobre a terra. Para vencer o sofrimento, o homem inventa prazeres e alegrias passageiras, como se pudesse afirmar a vida em uma fantasia constante. Para vencer a impermanência, o homem constrói pirâmides e títulos para que guardem e imortalizem a sua memória, como se fosse possível parar a marcha incessante do tempo.
Essas filosofias falam de um homem abstrato, ainda não nomeado em sua unicidade e particularidade intransferível. Hoje aqui, não falamos de um homem abstrato, mas de uma pessoa real, concreta, tangível: o nosso pai Audifax Rios. O sofrimento da vida, de forma mais generosa e inspirada, nosso pai transformou em arte. As suas pinturas tinham, muitas vezes, cores fortes e intensas, como se dos seus quadros a vida brotasse em toda a sua energia e esplendor. De outras vezes, os seus desenhos tinham traços grossos e de contrastes marcantes, como a xilogravura recortada na umburana bruta, para melhor simbolizar os sofrimentos e alegrias do seu povo.
Muito teríamos que falar do nosso pai como artista plástico, escritor, jornalista, editor, militante ativo de estéticas e éticas transformadoras, com grande importância artística na invenção de uma alma cearense e na afirmação da construção do nosso processo identitário. Aqui queremos falar da pessoa que amamos, do nosso pai querido, sempre tão amoroso e solidário. Se o homem nasce para se realizar através do amor, da amizade e da arte, podemos dizer que o nosso pai, nessa vida, realizou-se. A morte é apenas a completude dessa realização, imortalizando-o em nossas memórias e em nossos corações. Diante da impermanência de todas as coisas, ele afirmou a eternidade do amor.
Um amigo da nossa família contou-nos que, ao saber da morte do nosso pai, foi para casa, em estado de pesar e aflição. No prédio onde morava, com espantosa sincronicidade, encontrou um pequeno pássaro, que entrara por uma fresta, encolhido em recanto do corredor. Ele aproximou-se, o pássaro pousou no seu dedo, e ele pode levá-lo até a janela. Diante da amplidão, o pássaro ganhou os céus e voou até sumir entre as nuvens. Seria este acontecimento uma abençoada metáfora para acalentar os nossos corações inconsoláveis. Seria a vida este corredor estreito, e voo do pássaro a libertação do espírito que novamente reencontra o Amor de Deus, em sua infinita misericórdia? Da vida o que fica? O que fica é o tesouro que a traça não rói e a ferrugem não devora... O que fica é o intangível, o imaterial, o que se esconde no fundo da alma e podemos chamar de amor, solidariedade, amizade, beleza, gratidão...
O sertão é o território mítico e sagrado na vida e na arte do nosso pai. Na sua última crônica, publicada no dia 24 de abril, no jornal O Povo, ele escreveu comovido sobre a sua terra. Essa última crônica tinha o dom profético de uma carta de despedida. Não foi por coincidência que, para partir desse mundo, o nosso pai escolheu Santana do Acaraú, a sua querida Licânia - o mesmo lugar que o viu nascer. Em tudo a marca do sertão profundo e da infância mágica que ecoou em forma de arte e cores e poesias, até o último momento da sua vida. Morreu perto dos sentimentos mais profundos e dos mitos fundadores da sua vida. Assim, ele fechou o ciclo da vida, reencontrou a dimensão cósmica da sua reunião com Deus, na terra da bem aventurança. Morreu nos vastos prados do sertão sagrado.
Adeus, pai.
(*) Carta lida como despedida pelos filhos de Audifax.
Publicada In: O Povo, Vida & Arte, de 1º/05/2015.

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