terça-feira, 18 de agosto de 2015

O ANARQUISTA COROADO: perfil 2

O ensaio de Artaud sobre Heliogabalo, um césar da decadência romana, faz o leitor vivenciar dor, desorientação e certa dureza absurda. Este césar é filho, talvez, do imperador Caracalla, com Júlia Domma, sacerdotisa de Emesa, na Síria, descendente, à época, de um milênio de tradição dos cultos ao sol e à fertilidade.

Gerado em Roma, nasce em Antioquia e retorna a Roma para reinar, depois de uma sequência de grandes golpes políticos. Evidencia-se que suporta mal a rotina da coroa, o respeito às regras e o equilíbrio de decisões, e sempre que possível joga-se na confrontação direta, acendendo a adrenalina da luta no octógono dos palácios e das ruas, realizando espetáculos para o gosto das massas, pregando o extremo com o exemplo.
Artaud define Heliogabalo como um tirano, radicalmente coerente e obstinado, fiel a uma ordem mística e subjetiva, que faz do trono romano um teatro de fantoches. E todo tirano intenta acertar completamente o mundo pelo seu compasso singular, confundindo-se com a Lei. Portanto, este que acorda convulsões perigosas, cheias de rebelião teatralmente declarada e de leilões, de consciências e fidelidades, devora-se e devora.
Retirada a pátina escatológica, eu gosto deste poético esboço do ensaio-biografia sobre um individualista impulsivo e sistemático que, diante do poder absoluto, subverte-se absoluta e psicopaticamente. Em algumas ditaduras africanas ou asiáticas ainda é possível encontrar tais surrealismos, mas, mesmo domados, eles espreitam no comportamento de muitos gestores públicos atuais, pelo Brasil e pelo mundo, vítimas do desmedido.
Nos últimos milênios, criamos e recriamos uma palavra: democracia. Sua prática exige pactuação prévia de regras e obediência, até nova pactuação. Também exige articulações e mediações. Quando o gestor ultrapassa o rigor técnico, subverte as instâncias de mediação, toma partido diante de direitos legítimos em contradição e subleva as bases, a democracia cambaleia e passa a vogar, pelo ar, o odor da tirania.
(*) Professor titular em saúde pública e reitor da Uece.
Publicado In: O Povo, Opinião, de 8/8/15. p.8.

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