Por Juliana Sayuri, da Revista Pesquisa Fapesp
Nas Olimpíadas de Berlim, em 1936, a cidade alemã recebeu
mais do que delegações de atletas e turistas. Desembarcaram também na
"nova" Alemanha os primeiros estudantes latino-americanos atraídos
por cursos, congressos e visitas a instituições médicas do país. As excursões
cresceram nos anos seguintes, tornando-se itinerantes. Do Brasil, jovens
graduandos, principalmente da Escola Paulista de Medicina, visitaram hospitais,
laboratórios e órgãos oficiais, em missões médico-diplomáticas manejadas por
ministérios à época dominados pelo Partido Nazista. Algumas eram promovidas
pela Academia Médica Germano-ibero-americana, fundada em 1935. O objetivo era
fomentar as relações médicas entre Alemanha e países da América Latina.
"A medicina teve
papel importante nessas relações diplomáticas porque gozava de grande prestígio
internacional, embora não fosse uma ferramenta tão visível de propaganda
cultural", diz o historiador André
Felipe Cândido da Silva, da Casa de Oswaldo Cruz/Fundação Oswaldo Cruz
(COC/Fiocruz). "Durante o
nacional-socialismo, a corporação médica alemã foi um dos segmentos que se
alinhou mais estreitamente ao novo regime. Os médicos, como representantes da
arena acadêmica, eram porta-vozes convictos do intenso nacionalismo vigente. E
havia a dinâmica indústria farmacêutica, com interesse em consolidar seus laços
com clientes estrangeiros." Silva
explorou o papel da ciência na diplomacia cultural alemã entre 1919 e 1950, com
ênfase na década de 1930, durante pós-doutorado realizado na Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).
Por diplomacia cultural entenda-se o esforço germânico que congregou diplomatas
e cientistas, universidades, empresas e companhias de navegação, entre outros
atores.
Além das expedições científicas de estudantes,
enfermeiros, docentes, pesquisadores e até pacientes, algumas estratégias
articulavam médicos e diplomatas entre Brasil e Alemanha. Havia periódicos
especializados, como a Revista Médica de Hamburgo, fundada por Ludolph Brauer,
organização de encontros científicos internacionais, campanhas sanitárias, consolidação
de produtos da indústria farmacêutica alemã e construções de hospitais por
vezes voltados à assistência de imigrantes.
Enquanto no Brasil – especialmente no circuito Rio-São
Paulo – as faculdades de medicina ganhavam corpo, com maior especialização e
interesse tecnológico, sofisticação das técnicas de intervenção cirúrgica e
avanços em procedimentos de diagnóstico e profilaxia, a Alemanha já era ponta
de lança do desenvolvimento científico. Ali foi elaborado o modelo médico que
alicerçou a formação contemporânea com o tripé ensino, assistência clínica e
pesquisa universitária em Berlim, Göttingen, Heidelberg e Munique. Descobertas
clínicas e inovações cirúrgicas vinham de laboratórios de universidades,
indústrias e institutos alemães, que contavam com expoentes como Robert Koch,
Rudolf Virchow, Paul Ehrlich, Emil Kraepelin, Emil von Behring, August von
Wassermann, entre outros.
As ciências tiveram impacto no contexto político, às
vésperas da Segunda Guerra Mundial. "Tornaram-se
ingredientes importantes do prestígio nacional, ainda mais no ambiente de
intenso nacionalismo", diz Silva. Na
análise do historiador, a experiência da Primeira Guerra já tinha demonstrado a
importância de estruturar complexos nacionais de pesquisa científica, aliando
instituições acadêmicas, indústrias, militares e Estado. "Além disso, o discurso científico contribuiu para
legitimar ambições territoriais e pretensões de superioridade nacional e racial
importantes para conquistar a adesão interna e a externa, de aliados", observa.
Superioridade cultural
De acordo com Silva, médicos alemães se envolveram na
propaganda cultural, persuadidos pela superioridade de sua cultura. Entretanto,
após a Primeira Guerra, a ciência alemã ficou relativamente isolada quando
parte dos cientistas se manifestou a favor do militarismo germânico. Ademais,
físicos, médicos e químicos participaram de estudos como o desenvolvimento de
gases letais. A instrumentalização do conhecimento para fins bélicos levou
vários países a boicotar a ciência alemã até meados da década de 1920. "É importante, no entanto, distinguir os diferentes níveis
da cooperação científica transnacional para ter clareza de que muitos
pesquisadores continuaram mantendo contato informal com seus pares de países
outrora inimigos. Embora repercutisse internacionalmente, para os
latino-americanos não teve praticamente nenhum efeito uma política de boicote
levada a cabo por organizações das quais muitos deles não faziam parte", pondera.
O patologista e microbiologista carioca Henrique da Rocha
Lima, por exemplo, se tornou um dos principais colaboradores da diplomacia
alemã nas décadas de 1920 e 1930. Rocha Lima descobriu a origem do tifo
exantemático em 1916, no Instituto de Doenças Marítimas e Tropicais de
Hamburgo. Na volta definitiva ao Brasil, em 1928, foi uma liderança marcante do
Instituto Biológico de São Paulo. O patologista Walter Büngeler, alemão de
Danzig (atual cidade polonesa de Gdansk), escolhido para a cátedra da Escola
Paulista de Medicina, pretendia ali iniciar um núcleo alinhado à ciência alemã
– e correspondeu às expectativas dos oficiais da chancelaria e do Partido
Nazista, transformando a escola num celeiro científico para as iniciativas da
Academia Médica Germano-ibero-americana, especialmente com as excursões de
estudantes.
O intercâmbio expressivo incluiu nomes como o
oftalmologista Antônio de Abreu Fialho, o psiquiatra Antônio Pacheco e Silva, o
dermatologista Adolfo Lindenberg, que foram convidados a visitar a Alemanha. Do
outro lado, vieram ao Brasil médicos como Franz Volhard, Helmut Ulrici e Walter
Unverricht, Heinrich Huebschmann e Karl Fahremkamp, entre outros. Diretor do
Hospital Eppendorf, Ludolph Brauer visitou o Rio, Salvador e São Paulo – ali
ainda passou pela distante colônia de Presidente Epitácio, onde existia uma
ativa célula do Partido Nazista. A deflagração da Segunda Guerra Mundial, em
1939, abalou o intercâmbio científico, que acabou a partir da entrada do Brasil
no conflito, ao lado dos Aliados, em 1942.
Fonte: UOL Notícias, de 20/05/2015.
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