sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

VARIAÇÕES NATALINAS


Pedro Henrique Saraiva Leão (*)
Quisera escrever uma crônica dezembrina, mas sem os cediços chavões sazonais. Sem neve, renas ou papai Noel. Sem trenós, apenas carros-pipa. Não havia avelãs, pinheiros, mas xiquexique e mandacarus. Viera encontrar-se com um rio prometido, dele beber, nele banhar-se. Também para transformar o agreste em pomar. Recolher facas e distribuir pão. Vinha de longe... tangendo velhas ovelhas, cavalgando trôpego pangaré. Ambos macérrimos, costelas à mostra. Pendendo de longo cacete de jucá, ostentava puído “lábaro” estrelado (bandeira, estandarte, enunciado na confusa letra do nosso hino nacional, o povo cantando sem entender).
Apresentava profundos vincos no rosto, quais talhados a golpes de faca. Suara muitos sóis, irrigando aquele chão gretado. Muitas luas prateavam seus cabelos. Transpirava o sangue do sofrimento. No gibão de couro tocos de pão, nacos de fumo, pedaços de rapadura e resto de farinha, lembravam o estirão percorrido. Lutara contra seca, aluvião, fome, fauna e flora, enfrentara leões, moinhos de vento, desafiara a sorte, o amor e a morte. Provara até “um certo contato com a lua”, evocando o poeta Antônio Girão Barroso. Escapara de areias movediças. Bárbaros e bérberes. Fora picado por três cobras que criara; indabém que Deus, ao concebê-lo, vedara-lhe o corpo para os vírus, vícios e venenos da vida. Peregrinando por ínvias vias, atravessara rios, vadeara riachos, escalara serras, penedias e noites sem fim.
Certa feita, embora cogitando desistir, descumprir promessas, pedir meças ao homem lá de cima, pensou mais. Carregando sua cruz, preferiu aguardar o último trem. Esperar, ia. Acreditava valer a pena, pois tinha a alma grande. Só, carecia de mais paciência. Tê-la-ia! O tempo não tarda, e tem todo o tempo para esperar. Sabia que vida é véspera. Aliás, a água da chuva não era preta como aparentavam as nuvens.
Deste provérbio africano lembrava-se sempre o professor Newton Gonçalves, na Faculdade de Medicina do meu tempo (1958-1963). Cuidava agora fosse nascer de novo, nova mente. Vencidos os demais perigos da existência, as incertezas das esquinas, o desamor dos amigos, os desacertos do destino, domadas as dores da consciência, chegava, afinal.
Não soaram sinos à sua chegada, mas balidos de ovelha, e guizos de cascavel. Bois berravam o contraponto. Não trazia ouro, mas pedaços de mica, e galhos de mirra por incenso. Contudo, trazia esperança. Viera adorar o divino infante Jesus, terno, tenro e eterno ramo de fé, para plantarmos no coração e embalar nos nossos braços cansados. Lembrou-se do retorno dos mortos para a ceia natalina – “e o que lhes iremos dizer? / aos mortos, quando chegarem? / o que, meu Deus! / os teus segredos, os meus?”. Chorou. Amanhã seria outro dia. Sorriu. Pecaríamos menos e amaríamos mais. E nossos pecados serão perdoados. Aleluia! Feliz Natal!
N.b. Os versos aspeados são de “meus eus”. Edições UFC, Fortaleza, 1994.
(*) Professor Emérito da UFC. Titular das Academias Cearense de Letras, de Medicina e de Médicos Escritores.
Fonte: O Povo, Opinião, de 21/12/2016. p.10.

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