Meraldo Zisman (*)
Médico-Psicoterapeuta
Só
ao envelhecer temos condições de nos perguntar sobre o que fizemos toda a vida.
Estou apreensivo com o aumento da violência no mundo. Para quem passou
trabalhando em plantões de hospitais, ambulatórios, consultórios, dormindo e
vivendo em alojamentos hospitalares, procurando minorar o sofrimento do
próximo, esta constatação é muito trágica. Nos bancos escolares da infância,
criei-me dentro de uma mistura do português falado no Brasil e o iídiche (uma
espécie de alemão falado pelos judeus da Europa Central e Oriental) de meu pai
prestamista - fugido da Bessarábia, lugar este tão improvável que, a esta
altura, deve ter mudado de nome.
Minha mãe nasceu no Rio Grande do Sul
(terceira geração no Brasil), ambos judeus de origem eslava. Para falar a
verdade, não sei o motivo destes meus gostos de ajudar às pessoas sofredoras e
deste meu vício pela leitura. Não gostei muito de esportes, e até hoje
considero-os uma sublimação do espírito guerreiro.
Aprendi a me interessar pela política nacional
e internacional com meu pai e seus amigos prestamistas (mascates israelitas),
nos bancos da Praça Maciel Pinheiro, vulgarmente denominada Praça dos Judeus.
Naquele tempo, era o lugar mais frequentado por essa gente de Nação. Apesar de
ser desajeitado em fazer amizade, certamente devido à minha timidez nata,
terminei sendo taxado de orgulhoso. Confesso, às vezes, mesmo depois de velho,
tenho vontade de colocar uma prancheta, pendurada no pescoço, com os dizeres:
Não sou chato, sou tímido e acanhado.
Terminei muito sozinho de
"amizades", porém Deus foi bondoso comigo e proporcionou-me minha
mulher Maria das Graças e meu cachorro Sócrates e meus filhos Andréa e Márcio.
Poucas foram as pessoas que me entenderam em um mundo cada vez mais interessado
pelo dinheiro e pelo egoísmo. Continuo a ser o que sou. Muitos me consideram um
besta, um petulante ou um introvertido.
Certa vez, em reunião da Congregação ou
Conselho Departamental, um colega psiquiatra me disse no embate de uma grande e
estéril discussão acadêmica:
- Você não conta, Meraldo, não faz mal a
ninguém!
Não me impunha. E meu pai me dizia:
"Ou você é muito bom ou não tem personalidade".
Continuo não sabendo guardar, por mais de meia hora, raivas ou mágoas de
alguém. Estavam certos, mas eu não era do feitio de eternizar brigas ou
desavenças. Pensava:
- Nós não somos eternos para que eternizar
inimizades?
Outro besteirol que ainda passa pela minha
cabeça é o de acreditar na lenda que, por meio da cultura, do saber e, da
ciência será possível melhorar a humanidade. E, o mais grave, é, apesar da
minha história de mais fracassos que vitórias, permaneço um esperançado no
gênero humano.
Durante todos esses anos dedicados à Medicina,
permaneci fiel às minhas leituras e muito mais à minha consciência. Para mim, o
computador me facilitou a escrever, porém pretendo usá-lo apenas como editor de
texto ou facilitador de alguma consulta na Internet. Apesar de achar uma
maravilha a facilidade da comunicação, continuo acreditando no valor das
antiquadas cartas. Acho que foi Victor Hugo (1802-1885) que cunhou a expressão
"um
homem civilizado escreve cartas".
Sempre fui muito trabalhador, interessado em
tudo o que acontece em minha casa e em todo o mundo. Não desejo tomar o lugar
da juventude e suas peripécias. Desde que o mundo é mundo as gerações se
sucedem... E o pior é ser considerado um velho transviado.
Não ando por aí fazendo alarde nem de minhas
dores nem de meus pesadelos e muito menos das minhas frustrações. Escrevi sobre
minha vida pessoal nos livros Jacob da Balalaica (sobre meus pais), Dois Dedos
de Prosa e Eu Digo, este último denuncio as querelas paroquianas das nossas
Universidades.
Escrevi também Nordeste Pigmeu e um outro
livro sobre Violência, a Metamorfose do Medo, que foram mencionados parcamente
no Brasil. Jamais em Pernambuco! Apesar da pouca repercussão de meus trabalhos,
fui recentemente convidado para passar seis meses, na qualidade de cientista
visitante, na Clínica Tavistock, de Londres, o mais tradicional centro
psicoterápico, em Londres, trocando experiências no setor de Violência Urbana,
envolvendo principalmente os adolescentes e os jovens.
Comecei minha vida universitária pesquisando e
denunciando a fome ancestral da maioria da população infanto-juvenil
brasileira. Como não foi de estranhar, atraí as críticas dos ortodoxos e também
dos heterodoxos que não conseguem sair das suas desnutridas pesquisas.
Atualmente esses fatos já não me incomodam tanto, pois sei que dentro das
minhas bisonhas condições fiz o que pude para evitar o morticínio de jovens na
faixa etária dos 14 aos 25 anos.
A vida se encarregou de mostrar-me o País, que
não era uma vida tão "protegida" para os judeus que fugiram dos pogroms das suas terras natais e
passaram a ser "galegos da prestação" no Recife. Banqueiros poderiam
ser, porém penetrar no santuário do poder, nunca! Não mereciam confiança. Tenho
a esperança de que o Brasil venha a ser um país de todas as raças, de todas as
culturas que possam se comunicar, entre elas. E descobri que a violência nas
relações humanas juntamente com a fome são as nossas maiores pragas - fatos que
depois se tornariam o tema principal de minha contribuição como profissional de
saúde.
O que mais me marcou na minha infância foi
quando deixei o Colégio Israelita e fui estudar no Colégio Osvaldo Cruz, no
Recife. Pela primeira vez, pressenti, ao sair do meu gueto social, o
preconceito antissemítico. Ler foi à salvação e a parte principal e a parte
didática de apreender compreender o Mundo.
Dois fatos marcaram por demais minha vida
pós-graduação: uma quando fui ser médico residente (aprendiz) no Hospital dos
Servidores do Estado (Rio de Janeiro) e a outra quando fui realizar estágio na
Inglaterra. Daí passei a ter uma visão mais ampla das coisas: profissional ou
pessoal. Hoje, os Estados Unidos dominam tudo, sinto muita saudade de Paris, de
Londres das minissaias da Mary Quant e do existencialismo de Jean-Paul Sartre (1905-1980).
E, na minha adolescência, deleitava-me com a Guerra Civil Espanhola descrita
por Ernest Hemingway (1899-1961) no seu emblemático - Por quem o sino dobram?
Suas touradas, lutas de boxes e valentias povoaram minha mente em formação.
Após a Segunda Guerra Mundial (Holocausto) e,
em plena Guerra Fria, chegaram os anos 60, 70 e 80. Com eles, os protestos dos
jovens em Paris, a revolução hippie que teve alcances planetários com seus
rapazes e moças trajando calças jeans e camisetas. O encontro dos Mundos. Pela
primeira vez na história do homem, os jovens do Terceiro Mundo dialogavam com
os do Primeiro Mundo. Drogas e sexo que eram temas reprimidos de repente
passaram a fazer parte do cotidiano. A juventude misturava-se pedindo Paz e
Liberdade. Ilusão da revolução universal e também o fracasso de tudo isso...
Assisto desolado a este Planeta de movimentos inacabados, apesar da esperança
inabalável por um mundo melhor.
Que pena! Mas, valeu à pena. Fica para o
futuro. Tudo fracassou apesar de serem esses movimentos argamassas para uma
pavimentação de uma estrada que conduza a uma sociedade mais justa. Passado
(aparentemente) o perigo nuclear, muro de Berlim, voltamos às guerrilhas,
atentados de todas as maneiras, invasões, luta pela energia, ecologia e o
aquecimento da Terra. Terrorismos e "homem bomba". Verdade - vivemos
mais tempo, porém sem melhorar a qualidade de vida.
E para concluir lembro-me, quando criança,
perguntava a minha mãe quando o mundo ia se acabar, e ela respondia:
- Meu filho, o mundo só se acaba para quem
morre.
Resolvi, então, continuar caminhando e quero morrer
bem vivo. Muito vivo! Assim estou nos meus 72 anos, muito vivo e permaneço com
a mesma capacidade de me indignar como se fosse um jovem adolescente com muitos
sonhos para realizar. Toda grande notícia de hoje, amanhã passará a ser mero
"jornal de ontem". Lutar sempre, apesar das limitações que a Biologia
imponha, é o meu Dever.
(Recife,
01.03.09)
(*) Professor Titular da Pediatria da Universidade de Pernambuco.
Psicoterapeuta. Membro da Sobrames/PE, da União Brasileira de Escritores (UBE)
e da Academia Brasileira de Escritores Médicos (ABRAMES).