Por André
Haguette (*)
Uma das características da sociedade
brasileira é seu caráter conservador. Ela muda, com efeito, mas não se
transforma; ela se adapta, embora sempre com atraso, às mudanças trazidas pela
modernidade, mas sem modificar seus traços fundamentais de duplicidade de seus
arranjos sociais e, portanto, de grande iniquidade social. Aboliu a escravidão,
mas não libertou os escravos que, mesmo com uma carta de alforria nas mãos,
continuam amarrados; urbanizou-se sem uma industrialização capaz de dar emprego
aos expulsos do campo; tolerou sindicatos mas os prendeu ao domínio do Estado;
doou leis trabalhistas antes que sejam conquistadas. Mais recentemente,
planejou o solidário SUS sem universalizá-lo permitindo uma saúde privada a
desfigurá-lo; criou uma lei do trabalho doméstico sem aboli-lo ao contrário do
que ocorreu em sociedades liberais; após 500 anos, colocou 95% das crianças na
escola sem eliminar a duplicidade escolar produzindo “doutores do ABC “ e
“analfabetos escolarizados”; via Bolsa Família, instituiu uma rede de
distribuição de renda mínima de cunho assistencialista em não oferecer aos
beneficiários meios de se livrarem da dependência do poder público e ter acesso
ao emprego e às condições de obtenção da própria renda; persiste em recriar as
Bolsas Empresa e Classes Médias via subsídios, clientelismo, corrupção,
desoneração, refis, impostos indireto e regressivo, cabides de empregos. A cima
de tudo, a passagem das elites rurais para elites urbanas em nada modificou a crueldade
de seu domínio.
Continua evidente a conclusão de
Frei Tito, em 2007, após análise do Bolsa Família: “A estrutura social do
Brasil, desigual e perversa, permanece intocada”. De 2007 para cá, obviamente,
essa estrutura se solidificou ainda mais.
Uma sociedade conservadora produz e
se sustenta numa mentalidade conservadora; as nossas elites e nosso povo, nós
temos uma mentalidade conservadora hipócrita, adeptos que somos do fatalismo
cultural, religioso, racial e econômico. Não nos colocamos nunca em cheque;
aceitamos o mundo a nosso redor como “natural”; “é assim mesmo”, repetimos.
Temos uma passividade e uma condescendência conosco mesmo, estando sempre a
lamentar não sermos como os outros povos que construíram um mundo melhor para
si mesmos. Jamais pomos no centro da discussão as três fontes principais de
desigualdade: a classe, a raça e o sexo, sobretudo a primeira, a classe. O
grande sucesso das classes dominantes brasileiras terá sido de passar aos
excluídos e trabalhadores sua ideologia de que as coisas são como Deus quer, a
“naturalização” e sacralização do status quo. Quaisquer ideias ou movimentos
dissonantes são taxados de “utópicos”, irrealizáveis, subversivo, ingênuos,
esquecendo que somente parecem utópicos e irrealizáveis do ponto-de-vista da
ordem social vigente. O que era utópico ontem pode ser a nova ordem hoje. Tudo
depende da perspectiva da pessoa ou do grupo no poder.
Há, portanto, um lugar para o
pensamento utópico; não somos condenados a sermos o país injusto que somos
hoje; como diziam os estudantes em 1968: “A praia é aqui”! Subscrevo as
palavras de Karl Mannheim: “a desaparição da utopia ocasiona um estado de
coisas estático em que o próprio homem se transforma em coisa”.
(*) Sociólogo
e professor titular da Universidade
Federal do Ceará (UFC).
Publicado In: O Povo, Opinião, de 18/6/18. p.27.
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