A quase bicentenária revista médica The Lancet, cuja credibilidade científica fora duramente arranhada recentemente, a reboque de um polêmico e malfadado artigo sobre o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19, publicou em 4 de setembro de 2020 um trabalho contendo os achados iniciais de um estudo com uma vacina russa, denominada Sputnik V, testada contra o novo coronavírus.
O imunizante em apreço encontra-se em desenvolvimento no Instituto
Gamaleya de Epidemiologia e Microbiologia pertencente ao Ministério da Saúde da
Rússia, cujo governo prometeu começar em outubro próximo a vacinação em massa dos
seus cidadãos.
A Sputnik V é uma vacina de vetor em que o material genético
do vírus é transportado por um vírus inócuo, que não consegue se replicar, com
o propósito de estimular a produção de anticorpos contra o Sars-CoV-2. Ela usa
dois vetores de adenovírus: um é o adenovírus humano recombinante tipo 26 (rAd26-S)
e o outro é o adenovírus humano recombinante tipo 5 (rAd5-S), que foram alterados
para expressar a proteína S do novo coronavírus, uma proteína utilizada pelo
vírus para ingressar nas células e infectá-las.
As vacinas foram elaboradas em formato congelado, já considerando
a necessidade da produção e da distribuição em larga escala, e na versão
liofilizada, para permitir que a vacina seja remetida a locais remotos e se
mantenha estável em baixas temperaturas.
A investigação foi aplicada em dois grupos de 38 adultos
saudáveis, perfazendo 76 sujeitos, com idades entre 18 e 60 anos, acompanhados
durante 42 dias, sendo um para medir a segurança da vacina e outro para avaliar
a sua eficácia.
Os indivíduos assim que se voluntariaram a receber a vacina se
isolaram, para evitar contágio prévio por coronavírus. Após a inoculação, eles foram
seguidos, ao longo dos dias de acompanhamento, em dois hospitais russos. A
versão congelada foi administrada no Hospital Burdenko, uma unidade do Ministério
da Defesa, e incluía militares. A versão liofilizada foi testada na Universidade
Sechenov, apenas com voluntários civis.
Os autores do estudo afirmaram ter identificado a eficácia
da Sputnik V, interpretando que os resultados sugerem que a vacina produz uma resposta
das células T dentro de 28 dias e que a produção de anticorpos no plasma foi
maior nas amostras dos inoculados quando comparada com a de pessoas infectadas.
Cumpre salientar que o “n” amostral do estudo russo foi de
pequeno tamanho, condição também reconhecida pelos próprios autores e ainda
sofreu vicio de seleção, perceptível na sua proeminência de pessoas jovens, bem
como pela presença de muitos militares entre os recrutados do estudo.
Para esses autores, a segurança foi comprovada porque não
teriam acontecido resultados adversos nas pessoas testadas, como consequência da
Sputnik V. Contudo, essa vacina não ficou livre de efeitos colaterais, posto
que, entre os investigados, cerca de metade deles teve febre alta (50%) e cefaleia
(42%); além disso, aproximadamente um quarto se queixou de adinamia (28%) e de artralgias
/ mialgias (24%).
A bem da verdade, nenhum dos efeitos colaterais acima reportados
é qualificado como efeito adverso grave, sendo eles usualmente semelhantes aos
que são detectados no processo de desenvolvimento de vacinas similares.
Sabe-se que efeitos adversos graves de fármacos em estudo
são, frequentemente, eventos de ocorrência rara, sendo, por conseguinte, muito baixa
a sua probabilidade de ocorrer em pequenas amostras. Em geral, quando eles
existem, apenas são verificados em estudos de fase III, como o que se constatou,
recentemente, com a vacina ora em desenvolvimento, fruto da parceria entre a
Universidade de Oxford e a farmacêutica britânica AstraZeneca, quando se
diagnosticou um caso de mielite transversa, o que desencadeou a suspensão temporária
da pesquisa, para se dirimir a causalidade, associando-a ou não ao uso dessa
vacina. Por vezes, os efeitos adversos graves somente são aflorados quando o
fármaco já está liberado para amplo emprego populacional e se acha em processo
de vigilância pós-comercialização.
Os resultados do estudo russo foram acolhidos de modo entusiástico
por governantes e pelo público em geral, porém apenas discretamente encorajadores
na comunidade científica, diante da velocidade na realização da pesquisa e da
sua subsequente publicação na The Lancet, e por ser ainda um estudo de fase II.
Há mais de uma centena de vacinas sendo desenvolvidas em
laboratórios de vários países e algumas delas já vêm sendo testadas em estudos
multicêntricos de fase avançada conduzidos em muitos países, a exemplo do
Brasil, no esforço internacional de se dotar a humanidade de uma vacina que
seja, ao mesmo tempo, eficaz e segura, e igualmente acessível e de baixo custo.
Há, claramente, uma disputa de mercado, marcado não tanto para
gerar um benefício para a Humanidade, mas para garantir um lucro exacerbado aos
fabricantes que se assenhorarem dessa cadeia de produção, comercialização, distribuição
e aplicação da vacina contra o novo coronavírus. Dificilmente, o mundo se deparará
com o altruísmo perpetrado por Albert Sabin, que renunciou ao seu inerente
direito de patente da vacina antipoliomielite oral, para tornar a sua invenção
algo inteiramente acessível aos povos e nações. A ele, no entanto, foi-lhe
negado o Prêmio Nobel de Medicina, apesar de sucessivas indicações do seu nome
para auferir essa honraria; entretanto, a despeito dessa injustiça, o cientista
Albert Sabin figura no rol dos grandes benfeitores da humanidade.
Desperta especial atenção o fato do Instituto Gamaleya de
Epidemiologia e Microbiologia nada ter publicado sobre os resultados
laboratoriais com o patógeno e os ensaios pré-clínicos dessa pesquisa, tornando
público os resultados da sua fase II.
Alguns elementos dessa investigação desencadeiam severas críticas
e dúvidas sobre o presente projeto do Instituto Gamaleya. Um deles,
naturalmente, é a pressa com que os russos buscaram se projetar nesse campo
científico, mormente quando se desconhece uma contribuição de proa e deveras
inovadora no âmbito da pesquisa imunológica oriunda das frias estepes russas.
Considerando o ambiente de concorrência, às vezes até um
pouco inóspito, entre a Rússia e países do Ocidente, muitos acreditam que
etapas possam ser suprimidas ou mitigadas para se anunciar um retumbante
sucesso, antes mesmo que a eficácia vacinal seja ratificada.
Com efeito, o Instituto Gamaleya informou que o estudo da
fase III da vacina foi aprovado em 26 de agosto passado e envolverá 40 mil voluntários,
com idades e estados de saúde variados. Mas, por outro lado, o Presidente Putin
anunciou que a vacinação em massa dos russos transcorrerá, paralelamente, à
aplicação da fase III, e não na sequência desta, como seria o cientificamente
recomendado.
Observa-se que diversos países ingressaram em uma espécie de
corrida contra a Covid-19, assemelhada à corrida espacial, em que se busca exibir
a supremacia científica e tecnológica sobre países rivais ou competidores.
A maneira como os russos se lançaram nessa disputa de
mercado traz à mente a lembrança da corrida espacial, no período da guerra
fria, do pós-II Grande Guerra, vencida pelos países aliados, quando os
norte-americanos enfrentaram os soviéticos no campo do espaço, e os últimos assinalaram
um tento à frente ao lançarem, em 4 de outubro de 1957, na órbita terrestre o
primeiro satélite artificial, o Sputnik I, que culmina com o Sputnik V, quando
em 1957 se projetou no espaço a cadela Laika. Pelo visto, não foi obra do mero
acaso nomear de Sputnik V a vacina russa contra a Covid-19.
Parece estranho que governadores brasileiros se antecipem na
adesão à vacina russa em epígrafe, como o estado do Paraná, que assinou um
memorando de cooperação para ter acesso à Sputnik V, e o da Bahia, cuja Secretaria
de Saúde fechou acordo com a Rússia para o fornecimento de 50 milhões de doses
da vacina Sputnik V ao Brasil. O estranhamento ganha visibilidade quando não se
sabe da real validade externa do estudo publicado em The Lancet e, de igual modo, se desconhece tanto o grau como a
duração da imunidade proporcionada pelo produto russo.
Por fim, é recomendável não incorrer em maiores riscos e
gastos impróprios ao se utilizar essa vacina russa, antes da mesma vir a ser
submetida a um protocolo de fase III, no qual se comprove uma saudável relação
custo-benefício.
Prof. Dr.
Marcelo Gurgel Carlos da Silva
Docente de Epidemiologia Clínica da Uece
*Publicado In: Jornal do médico digital, 1(5): 60-5, setembro de
2020. (Revista Médica
Independente do Ceará).
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