domingo, 24 de janeiro de 2021

ESCAPANDO DA CORTE MARCIAL

         Corria o ano de 1944, em plena II Guerra Mundial, quando o clima de conflito imperava nas cidades costeiras do Brasil, submetidas a blecaute, a fim de não atrair forças inimigas, com sorrateitos ataques.

Muitos acadêmicos de Medicina estavam engajados no Centro de Preparação de Oficiais da Reserva (CPOR), dentre eles um conterrâneo cearense, que era aluno mais adiantado, já prestes a se graduar na Faculdade de Medicina do Recife. Esse colega, um estudante brilhante, por sinal, há tempos mantinha um desentendimento com um capitão-médico, seu superior, que, por ter limitados conhecimentos médicos, guardava um certo despeito do futuro colega “cabeça-chata”, o qual, por sua vez, era implacável com o beócio militar.

Numa oportunidade, aconteceu um sério entrevero no refeitório da guarnição do CPOR, quando foi oferecida, no cardápio, uma carne com fortes indícios de deterioração. Houve um clamor geral dos aspirantes a oficial, em franco protesto contra a comida ali servida.

O dito capitão-médico, abusando de sua autoridade, diante do protesto coletivo, ameaçou a todos:

– Vocês vão ter que comer tudo.

– Mas, capitão, a comida está estragada – insistiram os aspirantes.

– Não aceito recusas e não pode ter restos nos pratos retrucou o prepotente oficial.

– A carne exala um mau cheiro; está horrível, capitão – ponderou outro aspirante.

– Não me interessa e pronto: esse é o “rango” que vocês bem merecem.

– Capitão, o senhor, como médico, sabe bem que isso pode nos causar transtornos intestinais – argumentou o conterrâneo e quase médico cearense.

– Você acertou! Disse bem: sou médico formado, enquanto você não passa de um acadêmico.

– Isso está errado, nós somos aspirantes – reclamou um colega paraibano.

– Aspirantes ou “samangos”, para mim, é tudo igual, não passam de meros recrutas inservíveis.

– Não vamos comer nada, capitão – falou um baixinho invocado, um filho da Zona da Mata pernambucana.

– Se não comerem agora, determinarei a detenção coletiva no quartel – explodiu o capitão.

Nesse momento, o acadêmico do Ceará, que vinha até então controlando o seu ímpeto adrenérgico, em parte contido por seus colegas de farda, um jovem de compleição, que parecia com Henrique VIII, mais largo do que alto, aproxima-se do capitão-médico, e aplica-lhe um vigoroso bofete. Em consequência do golpe, o capitão foi ao chão, ficando desfalecido, e somente depois de quase meia-hora despertou do desmaio.

O caso gerou um pandemônio na caserna, e a subsequente prisão, em solitária, uma vez que o episódio foi considerado uma insubordinação de extrema gravidade. Por ocorrer em um conturbado período belicoso, o alto comando militar sediado no Recife decidiu levar o impetuoso cearense à Corte Marcial, de imprevisível veredicto.

A mobilização dos docentes e dos discentes da Faculdade de Medicina do Recife somente conseguiu livrar o impulsivo acadêmico por meio de um atestado de loucura. O “doido” em tela tornou-se um exímio médico e um dos mais aguerridos professores da nossa UFC.

Marcelo Gurgel Carlos da Silva

Ex-Presidente da Sobrames-Ceará

* Publicado In: SILVA, M. G. C. da (Org.). Meia-volta, volver! Médicos contam causos da caserna. Fortaleza: Expressão, 2014. 112p. p.65-67.

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