Meraldo Zisman (*)
Médico-Psicoterapeuta
Estaremos caminhando para uma
Medicina sem médico nesse denominado mundo novo normal pós-pandemia? Vamos à
minha profissão que exerço há mais de sessenta anos.
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Estaremos caminhando para uma Medicina sem médico nesse denominado
mundo novo normal pós-pandemia? Vamos à minha profissão
que exerço há mais de sessenta anos.
O perfil do médico passou a ser o de um profissional dispensável e com
tendências a virtualidade. Adianto ao leitor: a qualidade não material
está muito em moda, dentre as muitas novidades trazidas ou aceleradas por essa
gripe sazonal que se diz ser uma pandemia (pandemia é o nome que se dá a
qualquer epidemia de doença infecciosa que se espalhe por uma grande região
geográfica, como um continente ou até mesmo todo o mundo como a Covid 19).
O que mudou foi a maneira da relação médico-paciente. Senão vejamos
alguns aspectos da prática médica. Qual a importância e a necessidade de ter um
profissional para palpar, auscultar, ter empatia, afinidade, solidariedade, se
todas as respostas e perguntas tornarem-se simples algoritmos orientados pelas
perspectivas estatísticas, de frequência, tendências, desvios padrões,
percentuais, etc. A medicina tornar-se-ia num conjunto de meras probabilidades,
expresso em números e baseado em exames complementares, sejam laboratoriais ou
produzidos por imagens.
Benjamin Disraeli (1804-1881) político e escritor inglês já dizia no seu
tempo: “Existem três tipos de mentiras: as mentiras,
as mentiras deslavadas e a estatística”.
Por sinal, esquecemos repetidamente que cada criatura ao sofrer de uma
enfermidade é de comportamento singular, dado que cada pessoa é um sistema
biopsicossocial único — sofre, padece, sente, reage de maneira particular. Além
disso, a Medicina não é um conjunto de sim ou não, certo ou errado e muito
menos uma tendência com margem de erro para cima ou para baixo. Mas vamos aos
fatos.
Contam por aí que há agora médicos que nem mesa de exame clínico possuem
em seus consultórios. Baixam a cabeça depois de uma saudação para o macambúzio
intitulado paciente e não ouvem/escutam/enxergam e muito menos vêm, ouvem ou
falam com a pessoa que os procura. Acham que não há necessidade de examinar,
palpar, sentir, tocar, pois há exames laboratoriais, ultrassonografia portátil
e quejandos, que diminuem o seu trabalho, facilitado e concentrado nas
tecnologias médicas.
Tais médicos passam a vida procurando patologias nas imagens distorcidas
das tomografias e tantas outras imagens, almejando conhecer e aliviar o
sofrimento daquele que os consultam. Imagino a distorção oftálmica de um
radiologista que enxerga a vida de uma pessoa pela chapa de um RX. Agora, com a
ressonância magnética, a tendência é o atendimento piorar cada vez mais.
Tomo como exemplo o PetScan (um exame de diagnóstico diferente dos demais
exames de imagem, como a tomografia computadorizada e a ressonância magnética e
outros assemelhados e que possui a capacidade de imaginar os problemas a nível
celular através da emissão de radiação atômica). Ademais, a referida geringonça
tecnológica mede a atividade metabólica das células, identificando o câncer
precocemente. Para saber se vale a pena intervir ou envenenar um tumor (e
muitas vezes o próprio paciente), identificado como maligno ou benigno, não
importando o local onde apareça, mas não informa as emoções humanas.
Além do mais, será pertinente lembrar: existem médicos que tem nojo de
tocar no doente, colocam sobre a mesa que os separam um computador e outras
parafernálias tecnológicas como se fosse uma camuflagem midiática separadora
das emoções dele e das do paciente. Os muros criados pela ciência tecnológica
são uma boa saída para alguns ou a maiorias dos médicos, com seus ascos ou repugnâncias
pessoais, evitando tocar o corpo, quanto mais a alma ou a mente da pessoa que
necessita de cuidados.
Independente desta explanação inicial, agora está na moda discutir sobre
a obrigatoriedade da vacina, se a vacinação compulsória é ou não democrática,
se é ou não indicado o uso de um imunizante contra as doenças
infectocontagiosas, seja por bactéria ou vírus.
Não sou ingênuo e sei que em tudo há política, ideologias, princípios
religiosos e outros tantos aspectos que seria enfadonho citar. Mas a pergunta
é: será que no próximo ano a covid-19 passará a ser denominada covid-21 e
apenas por isso, passando o novo ano a ser considerado como neo-normal…?
Quando é que vamos nos recordar de que as doenças, apesar do sofrimento
que causam, podem ser pensadas, aliviadas, numa tentativa de equilibrar um
organismo que está sofrendo? O paciente não é vítima de azar ou maldição, mas
se expressa através dos sintomas, de maneira socialmente mais elegante.
Apesar dessas apologias, um médico experimentado não desconhece a
dificuldade de um paciente saber dizer o que está sentindo e o que procura.
Imaginem como é o atendimento a pessoas com o uso exclusivo de tecnologias,
caso do médico e seu paciente ficarem localizados em diferentes espaços
geográficos e nem se conhecerem, nem se tocarem. Nos dias de hoje temos o
pretexto da pandemia e depois – tenho quase certeza – aparecerão outros
motivos, como se atender uma pessoa que sofre fosse apenas uma maneira de
aumentar a clientela.
Será essa a função do médico e da Medicina nesse novo normal e virtual?
Nada mais estúpido do que o Normal, imagine o Novo Normal. Se
o antigo já não era nadinha, que dizer desse tal de novo normal?
Normal é como unanimidade e já dizia o nosso jornalista Nelson Rodrigues
(1912-1980): ‘toda unanimidade é burra’. Imagine o mal que essa
unanimidade neo-normal pode causar, propagada pelas atuais mídias sociais e
profissionais.
(*) Professor Titular da Pediatria
da Universidade de Pernambuco. Psicoterapeuta. Membro da Sobrames/PE, da União
Brasileira de Escritores (UBE), da Academia Brasileira de Escritores Médicos
(ABRAMES) e da
Academia Recifense de Letras. Consultante Honorário da Universidade de Oxford
(Grã-Bretanha).
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