Por Demitri Túlio, jornalista de O Povo
Há um ser humano lendário no Ceará que completou
103 anos na semana passada. Doutor Pinho. Lúcido, ele é o personagem principal
da história da descoberta do calazar no Estado. Ele notificou, diagnosticou e
tratou de pacientes em Viçosa nos anos quarenta
Felizardo de Pinho Pessoa Filho fez 103 anos há cinco dias. Vivinho da
Silva é desses fenômenos no Brasil, covidário do mundo, resistentes em meio a
400 mil mortes. Benza-se a vida.
Por fortuna, já tomou as duas doses das vacinas. É um longaevus, define
o dicionário.
Não fosse a idade cronológica, sem exagero, o doutor Pinho estaria na
linha de alguma frente contra o coronavírus.
Doutor Pinho, falei com ele há algumas semanas por videoconferência,
derrama abundância.
E é acreditação dele só ter passado dos 100 anos porque teria feito um
pacto pelo viver alheio. Futurou permanência.
É um desses sanitaristas imprescindíveis à Terra.
Imagine aí, as matas ainda mais fechadas de Viçosa do Ceará nos anos
quarenta e uma praga a matar caboclos e indígenas na Ibiapaba.
Em 1944, identificou um casal de
idosos. Em janeiro de 1946, achou o segundo caso. E em fevereiro do mesmo ano,
o terceiro doente com calazar
Foi o farmacêutico, único doutor num arrabalde sem hospital que
descobriu, diagnosticou e tratou dos primeiros pacientes contaminados pelo
calazar no território cearense.
A leishmaniose visceral, uma varíola canina, foi investigada na marra e
no idealismo do rapaz de família rica da Serra Grande. Eram donos da primeira
botica medicinal de Viçosa, única farmácia.
Verdade se diga, o avô de dr. Pinho - o major Felizardo, também
farmacêutico e pai de outro farmacêutico - numa carta, em 1909, a um irmão
citava um "mal do buchão" que vinha matando desvalidos.
Doutor Pinho, ele me contou com riquezas de recordações, que, a cavalo,
foi investigar no entorno da lendária mina da Pedra Verde a incidência de uma
peste que vinha colecionando óbitos fora do radar do precário
"sistema" sanitário do Estado.
Só um parêntesis. A exploração da mina de cobre, lembra o
protozoologista cearense, seria a origem do problema. Uns ricos capitalistas
daqui e da França desmataram onde não era para desflorar e cavaram a cova dos
outros.
Uma ganância, datada do meio para o fim dos 1800, que virou briga de
morte entre o Barão da Ibiapaba e os Boris Frères.
Mexeram no habitat do mosquito-palha ou dos flebotomíneos (Lutzomyia
longipalpis). Um inseto, a fêmea principalmente, hospedeiro do protozoário
espalhador do calazar.
Os caboclos que, miseravelmente, trabalhavam na mina de cobre começaram
a fazer habitações precárias no entorno do "trabalho". E assim,
viraram alvo das picadas do mosquito-palha e tiveram o corpo se desmanchando
pela doença.
Um galpão de um dos casarões da
família, em Viçosa, foi transformado em "hospital". Noutro
compartimento, a família dos pacientes se alojava com uma trempe, carne e
cereais doados pelo sanitarista
Doutor Pinho notificou o surto de leishmaniose visceral em Ubari,
Passagem da Onça e Lagoa do Barro Timbaúba, no distrito de General Tibúrcio e
Boqueirão do São Gonçalo no distrito de Oticicas.
Em 1944, identificou um casal de idosos. Em janeiro de 1946, achou o
terceiro caso. E em fevereiro do mesmo ano, o quarto doente com calazar.
O menino Francisco Silva, de três anos, ainda é memória. Cabelos caindo,
ventre aumentado, glândulas altamente exageradas. Não resistiu e parte de seus
órgãos foram colhidas e analisadas pelo farmacêutico.
Como sabia francês e as novidades vinham de lá para a farmácia do pai,
doutor Pinho comprou equipamentos de parasitologia e identificou os
protozoários do calazar.
Um galpão de um dos casarões da família, em Viçosa, foi transformado em
"hospital". Noutro compartimento, a família dos pacientes se alojava
com uma trempe, carne e cereais doados pelo sanitarista. Arranchavam-se
enquanto o tratamento durasse.
Na primeira leva, 18 pacientes e a coisa foi aumentando...
A história é longa e mais generosa ainda. Depois, contarei mais. Doutor
Pinho, como não encontro o adjetivo que o mereça, vou ficar no clichê: o senhor
é uma lenda e agradeço a honra de ter ouvido parte de sua sagarana.
Fonte: O Povo, 2 de maio de 2021.
Crônicas. p.34.
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