terça-feira, 5 de julho de 2022

TEORIA E PRÁTICA: velha e falsa contradição

Por José Jackson Coelho Sampaio (*)

A oposição teoria e prática, ampara-se em grandes pendências do pensamento polar, sem equador, que alimenta o debate sobre essência e aparência, abstrato e concreto, geral e particular, objetivo e subjetivo. Na modernidade, o debate penetra na Educação, sobretudo depois da reforma universitária napoleônica, que deixou o abstrato para os Centros e o prático para as Faculdades.

O desenvolvimento do capitalismo no Ocidente contribui cada vez mais para este processo, pela discriminação entre o que é útil ou não para o mercado de produtos, físicos ou simbólicos, com a educação sendo incorporada, toda ela, numa espécie de mercado de commodities. A oferta educacional torna-se mercado e seus produtos se incorporam em mercados de técnicas.

Se o século XIX foi o tempo da ciência, o século XX o foi da tecnologia, o século XXI o será da técnica, mas fetichizada em tecnologia. Nunca se falou tanto em tecnologia, nunca se usou tanto a palavra tecnologia do que agora, quando percebemos que o que ocorre é o afogar do mundo no domínio operacional da técnica sucateável, perdendo-se a capacidade de compreender os fundamentos e de recriar.

Exerço hoje a função de professor de disciplinas transversais, Psicologia Médica e Psiquiatria, em curso que ajudei a conceber, criar e implantar, o MedUECE. E, no debate sobre ajustes curriculares, surge a ideia-chave de quanto mais prática melhor, requerendo-se a expansão gradativa do período do Internato, com disciplinas imersas nos serviços. Uma teoria sem retroalimentação com a prática constitui fantasma dubitativo. Uma prática sem retroalimentação com a teoria constitui corpo sem cabeça.

As disciplinas básicas, as ético-filosóficas e as sócio-históricas fornecem a compreensão do ser humano em ação e relação, criando explicações para o que vivencia. Há algo que me caracteriza como ser humano, sujeito abstrato, passível de generalidade, na saúde e na doença, e algo que se concentra em mim, sujeito concreto, um corpo subjetivo-político, síntese de múltiplas determinações.

Precisa-se de formação médica que equilibre a tensão dialética entre teoria e prática, sem sucumbir diante de uma, resultando em médico hábil e com consciência dos limites e dos efeitos adversos dos fragmentos das técnicas que são dominadas em cada contexto histórico. Este médico necessita ser um ser humano cuidando de outros, um cidadão cuidando de outros e uma pessoa sensível, com um poder diferenciado na relação, cuidando de outras pessoas sensíveis, vulneráveis, que buscam ajuda.

Eu cuido de Dona Maria, não só do coração de Dona Maria. E este modo de cuidar precisa do acúmulo civilizatório de conhecimento que a história traz para você nas disciplinas ditas teóricas. Se a formação cola na técnica, ao modo dos cursos de Medicina antes da Reforma Flexner, o novo médico dará conta da técnica fragmentada à qual foi exposto naquele momento e natureza dos serviços que frequentou, perdendo a flexibilidade intelectual de afastar-se, criticar, propor, criar.

(*) Professor titular de Saúde Pública e ex-Reitor da Uece.

Fonte: Publicado In: O Povo, de 2/06/2022. Opinião. p.19.

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