Por Romeu Duarte
(*)
Conheci-o em 1981, mal entrado na Escola de
Arquitetura da UFC, quando, logo no primeiro encontro, inoculou-me o vírus do
patrimônio. Ácido, crítico e mordaz, de uma cultura e de uma inteligência
fascinantes, gostava de abrir cabeças, não de fazê-las. Tudo isso me passou
pela memória como um raio, eriçando meus pelos, quando soube da notícia no
comecinho da noite de ontem. Ele agora está ali, num esquife repleto de cravos,
cujo perfume intenso me craveja a alma. Na chegada ao velório, destroçado, sou
por todos tratado como se fora um filho seu. Mestre, mentor e guru de gerações
de arquitetos cearenses, agora dorme o seu eterno sono. Magro como um
passarinho, num severo paletó, o véu imóvel sobre a face sisuda. Choro como um
menino órfão.
Os familiares e os muitos amigos se acomodam
para pranteá-lo no vestíbulo do pavilhão, naquele instante transformado em
câmara mortuária. "Velá-lo aqui foi a melhor decisão", disse de mim
para comigo, "aqui, nesta escola, que sempre foi a sua casa". E as
lembranças me atropelam, como a um pobre cachorro cego numa rua movimentada. As
aulas da sua disciplina, nossa viagem a Icó, o telegrama de felicitações pela
minha formatura, seu apoio quando dirigi o IAB e o IPHAN, uma longa conversa
numa tarde, quando me contou sua ida ao Rio de Janeiro para trabalhar e
estudar. Até as nossas brigas entraram no rol das recordações. Jovens
estudantes, que nunca foram seus alunos e poderiam ser seus netos, graves e
solenes. O forte olor dos cravos mistura-se ao das coroas.
Seu colega-amigo-irmão chega amparado. À beira
do ataúde, diz: "Mais de 60 anos de amizade e convivência, e agora?".
Meus olhos fitam os seus, os quatro marejados. Abraço-lhe e beijo-lhe a testa.
"Lembra de que vocês dois ficaram até o fim do enterro do meu pai?",
perguntei-lhe. Ele me sorriu e devolveu o amplexo. O pátio da Arquitetura,
sempre animado, servia então, com suas muitas sombras, como espaço de acolhida
ao público silente e triste que não parava de vir. Todos tinham uma boa
história com ele. "Viveu uma vida longa e próspera", falou-me um
colega. "Você está assistindo a "Jornada nas Estrelas"
demais...", brinquei. Era também o momento de rever velhos companheiros,
todos nós desolados pelas últimas perdas do nosso acervo pessoal. Muito luto.
Súbito, o vento forte de setembro, que espalha
o pólen-sêmen do amor pelas árvores engravidando-as, agita com suas rajadas as
centenárias mangueiras do pátio. Estas idosas mangueiras, que presenciaram os
esforços dos quatro destemidos arquitetos que criaram este curso. "Que esta
ventania dissemine as lições do grande professor entre as gentes e que nestas
brotem valores mais humanos", pedi. Recebo no celular uma mensagem da
minha filha mais velha: "Foi-se uma rainha, vai-se um rei". As
lágrimas me vêm novamente, mesmo sabendo que ele recusaria a alegada realeza,
apesar do orgulho que guardaria no coração pelo elogio. As pessoas já conversam
em rodas, preparando-se para os ritos finais. No ar, a perfumada sinfonia dos
cravos e das mangueiras...
(*) Arquiteto. Professor
da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Fonte: Publicado In: O Povo, de 19/09/22. Vida & Arte, p.2.
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