sábado, 1 de abril de 2023

NO DIA DA MENTIRA

Por Ana Miranda (*)

Em 1 de abril de 1964 acordei cedo e fui para a escola a pé, como sempre. Mas o portão estava fechado e uma freira avisava às crianças que não ia haver aulas. Pensei que era uma brincadeira do primeiro de abril, logo ela iria abrir o portão e seria um dia comum de aulas. Corri, quando ela dissesse que era brincadeira eu estaria longe e já sonhava andar de bicicleta, ler meus livros favoritos, desenhar flores de outro planeta... quando ouvi um barulho estrondoso e parei. Uma fila de tanques de guerra subia pela avenida. Era a minha primeira visão da ditadura que iria assombrar e ceifar vidas por mais de duas décadas.

Por que a ditadura começou no Dia da Mentira? Por que existe o Dia da Mentira? Dia de escapar ao "Penso, logo existo", fugir à realidade que é tão árdua... Além da explicação real, deve haver a simbólica; como diz minha amiga psiquiatra lacaniana, tudo tem o lado real e o lado simbólico. E o imaginário. Hoje, mais uma vez é o mesmo dia primeiro de abril e não sou mais aquela menina de doze anos, porém estamos felizes, vivendo em plena democracia. Não há mais tanques na rua. Ao menos, nas nossas ruas. Abro o jornal em busca de uma mentira. Os jornais costumavam neste dia estampar manchetes com mentiras, sempre divertidas. O Museu do Embuste coleciona as mais bem-sucedidas: um alinhamento planetário iria diminuir a gravidade em tal horário, e depois disso, alguns afirmaram de pés juntos ter flutuado dentro de casa; a descoberta das fictícias ilhas San Seriffe, mas houve quem afirmasse já ter estado lá.

Em 1957 a BBC anunciou que, devido à amenidade do inverno, agricultores estavam colhendo uma excelente safra de espaguete. Imagens mostravam camponeses puxando fios de espaguete de árvores, secando-os ao sol. Pessoas ligavam para a emissora querendo saber como cultivar plantas de espaguete e alguém, com diplomacia, ensinava: Ponha um raminho de espaguetes em uma lata de molho de tomate, e espere. Impressionante a ingenuidade das pessoas. Hoje, o campo da verdade é florido de espaguetes, ilhas fantasmas. A mentira impera na bolha virtual à qual tanto nos dedicamos. Por que a humanidade precisa da mentira?

Um de meus livros favoritos na infância foi esta pérola da literatura alemã, Aventuras do barão de Münchausen, o maior mentiroso do mundo, mas suas mentiras são fascinantes, contadas com brilho e ironia. Ele era um militar e senhor rural alemão que serviu no exército russo em campanhas contra os turcos; ao retornar contava histórias que vivera, como viajar na bala do canhão, uma jornada na Lua, caçar com balas de cerejas, ou quando saiu de um pântano puxando a si mesmo pelos cabelos.

Virei ficcionista decerto lendo livros como este, ou meu outro favorito da infância, Alice no País das Maravilhas, que não são propriamente mentiras, mas fantasia, invenção: a mentira do bem, que diz a verdade. Assim como jornais, saturados com a obrigação do real, escapam no Dia da Mentira com brincadeiras mentirosas, pessoas usam o imaginário para compreender a realidade. Vou reler, hoje, o Barão de Münchausen e desenhar flores de outro planeta.

(*) Escritora. Colunista de O Povo.

Fonte: Publicado In: O Povo, de 1º/04/23. Vida & Arte, p.2.

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