Por Ana Miranda (*)
Em 1 de abril de 1964 acordei cedo e fui para a escola a pé, como
sempre. Mas o portão estava fechado e uma freira avisava às crianças que não ia
haver aulas. Pensei que era uma brincadeira do primeiro de abril, logo ela iria
abrir o portão e seria um dia comum de aulas. Corri, quando ela dissesse que
era brincadeira eu estaria longe e já sonhava andar de bicicleta, ler meus
livros favoritos, desenhar flores de outro planeta... quando ouvi um barulho
estrondoso e parei. Uma fila de tanques de guerra subia pela avenida. Era a
minha primeira visão da ditadura que iria assombrar e ceifar vidas por mais de
duas décadas.
Por que a ditadura começou no Dia da Mentira? Por que existe o Dia
da Mentira? Dia de escapar ao "Penso, logo existo", fugir à realidade
que é tão árdua... Além da explicação real, deve haver a simbólica; como diz
minha amiga psiquiatra lacaniana, tudo tem o lado real e o lado simbólico. E o
imaginário. Hoje, mais uma vez é o mesmo dia primeiro de abril e não sou mais
aquela menina de doze anos, porém estamos felizes, vivendo em plena democracia.
Não há mais tanques na rua. Ao menos, nas nossas ruas. Abro o jornal em busca
de uma mentira. Os jornais costumavam neste dia estampar manchetes com
mentiras, sempre divertidas. O Museu do Embuste coleciona as mais
bem-sucedidas: um alinhamento planetário iria diminuir a gravidade em tal
horário, e depois disso, alguns afirmaram de pés juntos ter flutuado dentro de
casa; a descoberta das fictícias ilhas San Seriffe, mas houve quem afirmasse já
ter estado lá.
Em 1957 a BBC anunciou que, devido à amenidade do inverno,
agricultores estavam colhendo uma excelente safra de espaguete. Imagens
mostravam camponeses puxando fios de espaguete de árvores, secando-os ao sol.
Pessoas ligavam para a emissora querendo saber como cultivar plantas de
espaguete e alguém, com diplomacia, ensinava: Ponha um raminho de espaguetes em
uma lata de molho de tomate, e espere. Impressionante a ingenuidade das
pessoas. Hoje, o campo da verdade é florido de espaguetes, ilhas fantasmas. A
mentira impera na bolha virtual à qual tanto nos dedicamos. Por que a
humanidade precisa da mentira?
Um de meus livros favoritos na infância foi esta pérola da
literatura alemã, Aventuras do barão de Münchausen, o maior mentiroso do mundo,
mas suas mentiras são fascinantes, contadas com brilho e ironia. Ele era um
militar e senhor rural alemão que serviu no exército russo em campanhas contra
os turcos; ao retornar contava histórias que vivera, como viajar na bala do canhão,
uma jornada na Lua, caçar com balas de cerejas, ou quando saiu de um pântano
puxando a si mesmo pelos cabelos.
Virei ficcionista decerto lendo livros como este, ou meu outro
favorito da infância, Alice no País das Maravilhas, que não são propriamente
mentiras, mas fantasia, invenção: a mentira do bem, que diz a verdade. Assim
como jornais, saturados com a obrigação do real, escapam no Dia da Mentira com
brincadeiras mentirosas, pessoas usam o imaginário para compreender a
realidade. Vou reler, hoje, o Barão de Münchausen e desenhar flores de outro
planeta.
(*) Escritora. Colunista de O Povo.
Fonte: Publicado In: O Povo, de 1º/04/23. Vida & Arte, p.2.
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