Por Izabel Gurgel (*)
Fátima Tremembé faz o elogio da mandioca ao tempo em que descasca
uma após a outra, faca tão afiada na pedra quanto as mãos das mulheres que
estão na roda, a tocar o serviço na casa de farinha coletiva dos Tremembé da
Barra do Mundaú, em Itapipoca.
Ela diz do sagrado, bem dizendo o sagrado, no melhor modo, talvez,
de dizê-lo: em ação. Uma série de pequenas ações em curso. O que se diz, quem
diz e o que é dito constituindo um corpo só, realizando-se vivinho da silva aos
olhos de quem tem gosto de apreciar, também, o audível, o tangível, o visível,
o comum, o ao redor se bulindo no movimento contínuo que é a vida. Sagrada é
ela, a vida, sabemos.
Fátima Tremembé: "A gente planta um pauzinho no chão...".
Ela começa a contar e parece cantar. Chamo cantiga do trabalho. Peço para ela
dizer de novo, outra vez, apreciando o desenho que se faz no fluxo da fala-ação
com o descascar das mandiocas, cada qual tão única e irrepetível. A fala, a
mandioca, as mãos, cada mulher variando no modo de sentar no chão, no manuseio
das facas, no pegar e soltar o fruto nascido (porque plantado, cultivado) da
terra.
Sentamos de tantos modos, não é? Olho a coreografia coletiva, uma
lição dos modos vários de fazer, de ser. A dança se faz em coro, literalmente
nos couros. Singularmente bonito. Da pilha ao meio, pega-se uma mandioca por
vez. É descascada até a metade, de uma extremidade ao meio. É devolvida para o
amontoado, que varia do começo todo cor-de-terra-escura até findar no
branco-marfim. Rendeiras. Você já viu uma roda de rendeiras assentadas no
cotidiano?
Imagino Sissi Tremembé trocando bilros, desenhando no vazio,
fazendo na renda a cena cuja linha mestra tentei seguir aqui. Sissi estava de
mãos ocupadas, na cozinha em mutirão de outra casa de farinha no território
Tremembé. A casa-sede da anual Festa da Farinhada. O almoço do dia era para
mais gente do que o número de famílias nas quatro aldeias Tremembé. São cerca
de 164, ouvi na mesa-banquete-cura da oficina de medicina tradicional.
As casas de farinha Tremembé cruzam julho de fogo aceso, com os
fornos acariciados pelo ir e vir da torra da farinha, da goma, o fogo a arder
sob beijus e bolos brancos. Serviço grande antes durante depois da feitura da
farinha, talvez a mais corriqueira presença nas mesas de quem, entre nós, tem
mesa e comida todo dia.
É trabalho. Imaginação, pensamento, mãos em ato. Uma tecnologia
social cuja engrenagem a maioria de nós sabe tanto quanto extrair tirar do que
brota da terra fibra, fio e daí tecer, torcer, tramar. O que quer que seja
rezar para você, reze no próximo e a cada bocadinho de farofa, cada colherada
de pirão, cada mordida na tapioca. Por mais perto que esteja o fogo onde foi
feita, e quem a preparou, cada porção que nos chega à boca tem estrada de
milênios.
Fátima repetiu. Disse outra vez, mirando a lâmina da faca e
marcando no cabo de madeira o tamanho da miudeza. "A gente planta um
pauzinho no chão. E daquele pedaço de pau dá essas coisas maravilhosas. O
alimento da gente. A gente tira a goma, tira a farinha; tira a crueira, a
crueira serve pra fazer caldo pra pessoa que às vezes tá com a cabeça fraca,
caldinho de crueira; as cascas servem pros animais comer e pra adubar a terra.
A manipueira vai para essas plantas aí (mostra as bananeiras), fica a coisa
mais linda a bananeira. Um pedacinho de pau que a gente planta no chão".
(*) Jornalista de O Povo.
Fonte: Publicado In: O Povo, de 9/07/23. Vida & Arte, p.2.
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