terça-feira, 15 de agosto de 2023

CAMINHOS DO CEARÁ: Farinhadas

Por Izabel Gurgel (*)

Fátima Tremembé faz o elogio da mandioca ao tempo em que descasca uma após a outra, faca tão afiada na pedra quanto as mãos das mulheres que estão na roda, a tocar o serviço na casa de farinha coletiva dos Tremembé da Barra do Mundaú, em Itapipoca.

Ela diz do sagrado, bem dizendo o sagrado, no melhor modo, talvez, de dizê-lo: em ação. Uma série de pequenas ações em curso. O que se diz, quem diz e o que é dito constituindo um corpo só, realizando-se vivinho da silva aos olhos de quem tem gosto de apreciar, também, o audível, o tangível, o visível, o comum, o ao redor se bulindo no movimento contínuo que é a vida. Sagrada é ela, a vida, sabemos.

Fátima Tremembé: "A gente planta um pauzinho no chão...". Ela começa a contar e parece cantar. Chamo cantiga do trabalho. Peço para ela dizer de novo, outra vez, apreciando o desenho que se faz no fluxo da fala-ação com o descascar das mandiocas, cada qual tão única e irrepetível. A fala, a mandioca, as mãos, cada mulher variando no modo de sentar no chão, no manuseio das facas, no pegar e soltar o fruto nascido (porque plantado, cultivado) da terra.

Sentamos de tantos modos, não é? Olho a coreografia coletiva, uma lição dos modos vários de fazer, de ser. A dança se faz em coro, literalmente nos couros. Singularmente bonito. Da pilha ao meio, pega-se uma mandioca por vez. É descascada até a metade, de uma extremidade ao meio. É devolvida para o amontoado, que varia do começo todo cor-de-terra-escura até findar no branco-marfim. Rendeiras. Você já viu uma roda de rendeiras assentadas no cotidiano?

Imagino Sissi Tremembé trocando bilros, desenhando no vazio, fazendo na renda a cena cuja linha mestra tentei seguir aqui. Sissi estava de mãos ocupadas, na cozinha em mutirão de outra casa de farinha no território Tremembé. A casa-sede da anual Festa da Farinhada. O almoço do dia era para mais gente do que o número de famílias nas quatro aldeias Tremembé. São cerca de 164, ouvi na mesa-banquete-cura da oficina de medicina tradicional.

As casas de farinha Tremembé cruzam julho de fogo aceso, com os fornos acariciados pelo ir e vir da torra da farinha, da goma, o fogo a arder sob beijus e bolos brancos. Serviço grande antes durante depois da feitura da farinha, talvez a mais corriqueira presença nas mesas de quem, entre nós, tem mesa e comida todo dia.

É trabalho. Imaginação, pensamento, mãos em ato. Uma tecnologia social cuja engrenagem a maioria de nós sabe tanto quanto extrair tirar do que brota da terra fibra, fio e daí tecer, torcer, tramar. O que quer que seja rezar para você, reze no próximo e a cada bocadinho de farofa, cada colherada de pirão, cada mordida na tapioca. Por mais perto que esteja o fogo onde foi feita, e quem a preparou, cada porção que nos chega à boca tem estrada de milênios.

Fátima repetiu. Disse outra vez, mirando a lâmina da faca e marcando no cabo de madeira o tamanho da miudeza. "A gente planta um pauzinho no chão. E daquele pedaço de pau dá essas coisas maravilhosas. O alimento da gente. A gente tira a goma, tira a farinha; tira a crueira, a crueira serve pra fazer caldo pra pessoa que às vezes tá com a cabeça fraca, caldinho de crueira; as cascas servem pros animais comer e pra adubar a terra. A manipueira vai para essas plantas aí (mostra as bananeiras), fica a coisa mais linda a bananeira. Um pedacinho de pau que a gente planta no chão".

(*) Jornalista de O Povo.

Fonte: Publicado In: O Povo, de 9/07/23. Vida & Arte, p.2.

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