Felipe van Deursen, Colunista
de Nossa
O
dia em que uma igreja do Maranhão processou cupins
Em
fevereiro de 1684, os proprietários rurais do Maranhão se revoltaram contra a
Coroa portuguesa. O episódio entrou para a história com o nome dos líderes da
refrega, os irmãos Manuel e Tomás Beckman.
Eles
aproveitaram a bagunça da festa do Senhor dos Passos, que levava uma multidão
às ruas, para se reunir em um convento e, de lá, tomar de assalto os armazéns
alvos da discórdia.
Bernardo
Pereira de Berredo, escrevendo algumas décadas mais tarde, em "Annaes Historicos do Estado do Maranhão",
registrou assim (mantive a grafia original):
"Na
noite deste dia 24 do mez de Fevereiro, e no mesmo acto, em que a devoção da
verdadeira crença conduzia a Imagem do nosso Redemptor com a Cruz ás costas do
Templo do Carmo para o da Misericordia, quiz o Beckman segurar melhor no
concurso do povo a commoção delle; porém comtudo desconfiando ainda da sua
constancia nas visinhanças do perigo, se servio só da occasião para o convocar
por si, e seus sequazes, a sitio solitario, mas pouco apartado da Povoação,
comminando logo a pena da morte aos que revelassen este segredo; e para que
fosse mayor o escandalo, se vião tambem entre os mesmos agentes alguns
Ecclesiasticos em habito de apostatas.
A
hora sinalada era a da meya noite, o lugar o da cerca dos Religiosos de Santo
Antonio, que tinha então aberta a ruina de hum muro (...)".
Os
Beckman protestavam contra a Companhia de Comércio do Maranhão, encarregada do
monopólio de exportações e que, segundo a trupe revoltada, não cumpria a função
de fornecer equipamentos nem mão de obra escravizada o suficiente. Eles também
estavam cansados dos jesuítas, que dificultavam a escravidão indígena.
Essas
seriam as causas da crise econômica que castigava o Maranhão. Os revoltosos
ganharam apoio de algumas camadas da sociedade, entre eles os franciscanos do
Convento de Santo Antônio, citado na obra do século 18, por onde as bases da
rebelião foram lançadas.
Que
lugar é esse?
Trata-se
de um dos centros religiosos mais antigos do Maranhão. A primeira igreja data
de 1625, feita em taipa apenas 13 anos depois de a cidade ter sido fundada por
franceses e batizada em homenagem a dois Luíses: Luís 9º, rei, santo e patrono
da França, e Luís 13, que era o monarca de então.
Os
franceses só duraram três anos no Maranhão. A Revolta de Beckman durou só um
ano: os líderes foram enforcados, presos, degredados ou multados. Os jesuítas
puderam retomar suas atividades, mas os revoltosos tiveram como vitória a
extinção da companhia de comércio.
Crises
políticas, elites insatisfeitas, reis e governadores vão e vêm. Mas os
problemas mais persistentes da igreja eram de uma ordem menor, muito menor.
Cupins!
Cupins que devoravam a comida dos frades. Cupins que destruíam móveis. Cupins
que devoravam tudo, a ponto de ameaçarem botar o convento abaixo.
Como
eliminar a praga? Bem, no século 18 a humanidade já tinha alguns métodos
disponíveis para lidar com cupins. Boa parte eram simpatias inócuas, é verdade.
Mas os freis e padres de Santo Antônio decidiram apelar para outra instância.
O
bispo local convocou os insetos a um ato de interdição e excomunhão. Os
acusados deveriam comparecer perante o tribunal eclesiástico a fim de explicar
sua conduta.
O
advogado de defesa escalado para representar os isópteros alegou que elas eram
criaturas de Deus e que, portanto, tinham direito a se alimentar. Sustentou
ainda que os cupins não eram criminosos, pois se apropriaram daquilo que estava
em suas terras, ocupadas por eles desde muito antes da chegada dos homens.
Não
é piada. O caso aconteceu em 1713, segundo o que está registrado em "Nova Floresta, ou sylva de varios
apophthegmas, e ditos sentenciosos espirituaes, e moraes (...)", publicado
pelo padre e escritor português Manuel Bernardes em 1747.
Bizarra
aos nossos olhos, a história não foi um caso à parte, uma excentricidade
maranhense. Pelo contrário. Durante alguns séculos, especialmente entre os 1400
e os 1600, tribunais julgavam cães, porcos, ratos, gafanhotos e pragas em
geral.
Acontecia
na França, na Itália, na Suíça e na Alemanha. E também em colônias distantes
dos reinos europeus, como o Maranhão.
Além
dos processos eclesiásticos, havia também os seculares, movidos por cidadãos
indignados contra os animais. Eram pessoas desesperadas, que não conseguiam
vencer pragas que ameaçavam plantações, estoques, casas inteiras
Como
lembrou o economista americano Peter Leeson em um artigo a respeito, era uma
época em que as pessoas penduravam colares de alho nas ovelhas na esperança de
que isso afastasse os lobos. Ou que borrifavam a água usada em banhos de gatos
no campo, a fim de afugentar os ratos. Perto disso, levar os animais à lei dos
homens e de Deus parecia uma boa solução.
Segundo
Leeson, os processos contra pragas faziam parte de uma estratégia da Igreja
para incrementar os ganhos do dízimo, ao evidenciar a legitimidade de sanções
sobrenaturais. Isso porque, como vimos, os julgamentos seguiam todos os
protocolos disponíveis. Não importava se o acusado fosse um humano, um roedor
ou uma colônia de insetos. Autoridades eram convocadas a testemunhar,
argumentações forenses eram disparadas em ambos os lados, deliberações
transcorriam.
No
caso do Maranhão, ficou decidido que os cupins deveriam ficar restritos a uma
área específica e que não poderiam invadir o resto do convento. Que aula de
resolução de conflitos!
Em
1906, o historiador E. P. Evans compilou uma série de casos do tipo no livro
"The Criminal Prosecution and
Capital Punishment of Animals" ("O processo
criminal e a pena de morte dos animais", sem edição brasileira). Ele
narrou os desdobramentos do julgamento de São Luís desta maneira.
"Nas
crônicas do claustro está registrado, na data de janeiro de 1713, que mal foi
promulgada a ordem do juiz prelado, lida oficialmente diante das tocas dos
cupins, todos [os insetos] saíram e marcharam em colunas até o local atribuído.
O analista monástico considera essa imediata obediência uma prova conclusiva de
que o Todo-Poderoso endossou a decisão do tribunal."
Não
se sabe se a decisão foi respeitada ao longo dos anos seguintes. O Convento de
Santo Antônio que podemos visitar hoje no Centro Histórico de São Luís,
patrimônio cultural da humanidade (muito mal cuidado, é verdade), é um enorme
edifício neogótico concluído em 1864.
Fonte: UOL.com.br Postado em 9/12/2023
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