sábado, 9 de dezembro de 2023

INSETOS VIRARAM RÉUS!

Felipe van Deursen, Colunista de Nossa

O dia em que uma igreja do Maranhão processou cupins

Em fevereiro de 1684, os proprietários rurais do Maranhão se revoltaram contra a Coroa portuguesa. O episódio entrou para a história com o nome dos líderes da refrega, os irmãos Manuel e Tomás Beckman.

Eles aproveitaram a bagunça da festa do Senhor dos Passos, que levava uma multidão às ruas, para se reunir em um convento e, de lá, tomar de assalto os armazéns alvos da discórdia.

Bernardo Pereira de Berredo, escrevendo algumas décadas mais tarde, em "Annaes Historicos do Estado do Maranhão", registrou assim (mantive a grafia original):

"Na noite deste dia 24 do mez de Fevereiro, e no mesmo acto, em que a devoção da verdadeira crença conduzia a Imagem do nosso Redemptor com a Cruz ás costas do Templo do Carmo para o da Misericordia, quiz o Beckman segurar melhor no concurso do povo a commoção delle; porém comtudo desconfiando ainda da sua constancia nas visinhanças do perigo, se servio só da occasião para o convocar por si, e seus sequazes, a sitio solitario, mas pouco apartado da Povoação, comminando logo a pena da morte aos que revelassen este segredo; e para que fosse mayor o escandalo, se vião tambem entre os mesmos agentes alguns Ecclesiasticos em habito de apostatas.

A hora sinalada era a da meya noite, o lugar o da cerca dos Religiosos de Santo Antonio, que tinha então aberta a ruina de hum muro (...)".

Os Beckman protestavam contra a Companhia de Comércio do Maranhão, encarregada do monopólio de exportações e que, segundo a trupe revoltada, não cumpria a função de fornecer equipamentos nem mão de obra escravizada o suficiente. Eles também estavam cansados dos jesuítas, que dificultavam a escravidão indígena.

Essas seriam as causas da crise econômica que castigava o Maranhão. Os revoltosos ganharam apoio de algumas camadas da sociedade, entre eles os franciscanos do Convento de Santo Antônio, citado na obra do século 18, por onde as bases da rebelião foram lançadas.

Que lugar é esse?

Trata-se de um dos centros religiosos mais antigos do Maranhão. A primeira igreja data de 1625, feita em taipa apenas 13 anos depois de a cidade ter sido fundada por franceses e batizada em homenagem a dois Luíses: Luís 9º, rei, santo e patrono da França, e Luís 13, que era o monarca de então.

Os franceses só duraram três anos no Maranhão. A Revolta de Beckman durou só um ano: os líderes foram enforcados, presos, degredados ou multados. Os jesuítas puderam retomar suas atividades, mas os revoltosos tiveram como vitória a extinção da companhia de comércio.

Crises políticas, elites insatisfeitas, reis e governadores vão e vêm. Mas os problemas mais persistentes da igreja eram de uma ordem menor, muito menor.

Cupins! Cupins que devoravam a comida dos frades. Cupins que destruíam móveis. Cupins que devoravam tudo, a ponto de ameaçarem botar o convento abaixo.

Como eliminar a praga? Bem, no século 18 a humanidade já tinha alguns métodos disponíveis para lidar com cupins. Boa parte eram simpatias inócuas, é verdade. Mas os freis e padres de Santo Antônio decidiram apelar para outra instância.

O bispo local convocou os insetos a um ato de interdição e excomunhão. Os acusados deveriam comparecer perante o tribunal eclesiástico a fim de explicar sua conduta.

O advogado de defesa escalado para representar os isópteros alegou que elas eram criaturas de Deus e que, portanto, tinham direito a se alimentar. Sustentou ainda que os cupins não eram criminosos, pois se apropriaram daquilo que estava em suas terras, ocupadas por eles desde muito antes da chegada dos homens.

Não é piada. O caso aconteceu em 1713, segundo o que está registrado em "Nova Floresta, ou sylva de varios apophthegmas, e ditos sentenciosos espirituaes, e moraes (...)", publicado pelo padre e escritor português Manuel Bernardes em 1747.

Bizarra aos nossos olhos, a história não foi um caso à parte, uma excentricidade maranhense. Pelo contrário. Durante alguns séculos, especialmente entre os 1400 e os 1600, tribunais julgavam cães, porcos, ratos, gafanhotos e pragas em geral.

Acontecia na França, na Itália, na Suíça e na Alemanha. E também em colônias distantes dos reinos europeus, como o Maranhão.

Além dos processos eclesiásticos, havia também os seculares, movidos por cidadãos indignados contra os animais. Eram pessoas desesperadas, que não conseguiam vencer pragas que ameaçavam plantações, estoques, casas inteiras

Como lembrou o economista americano Peter Leeson em um artigo a respeito, era uma época em que as pessoas penduravam colares de alho nas ovelhas na esperança de que isso afastasse os lobos. Ou que borrifavam a água usada em banhos de gatos no campo, a fim de afugentar os ratos. Perto disso, levar os animais à lei dos homens e de Deus parecia uma boa solução.

Segundo Leeson, os processos contra pragas faziam parte de uma estratégia da Igreja para incrementar os ganhos do dízimo, ao evidenciar a legitimidade de sanções sobrenaturais. Isso porque, como vimos, os julgamentos seguiam todos os protocolos disponíveis. Não importava se o acusado fosse um humano, um roedor ou uma colônia de insetos. Autoridades eram convocadas a testemunhar, argumentações forenses eram disparadas em ambos os lados, deliberações transcorriam.

No caso do Maranhão, ficou decidido que os cupins deveriam ficar restritos a uma área específica e que não poderiam invadir o resto do convento. Que aula de resolução de conflitos!

Em 1906, o historiador E. P. Evans compilou uma série de casos do tipo no livro "The Criminal Prosecution and Capital Punishment of Animals" ("O processo criminal e a pena de morte dos animais", sem edição brasileira). Ele narrou os desdobramentos do julgamento de São Luís desta maneira.

"Nas crônicas do claustro está registrado, na data de janeiro de 1713, que mal foi promulgada a ordem do juiz prelado, lida oficialmente diante das tocas dos cupins, todos [os insetos] saíram e marcharam em colunas até o local atribuído. O analista monástico considera essa imediata obediência uma prova conclusiva de que o Todo-Poderoso endossou a decisão do tribunal."

Não se sabe se a decisão foi respeitada ao longo dos anos seguintes. O Convento de Santo Antônio que podemos visitar hoje no Centro Histórico de São Luís, patrimônio cultural da humanidade (muito mal cuidado, é verdade), é um enorme edifício neogótico concluído em 1864.

Fonte: UOL.com.br Postado em 9/12/2023

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