quarta-feira, 10 de janeiro de 2024

CAMINHOS DO CEARÁ: as aves que aqui gorjeiam

Por Izabel Gurgel (*)

Andando na mata me dei conta: as palmeiras nos ensinaram sobre portas e janelas com persianas, venezianas. Ali, o ar a passar, a luz desenhando, as palmeiras fizeram com que intuíssemos sobre as vantagens dos vazios e cheios, da passagem de um ao outro, do movimento passível de manejo, materializando-se no cotidiano, tornando-se tão comum que até esquecemos que são da ordem da invenção. O mundo todo todo inventadinho. A cadeira, a colher, a cama, qualquer caixa, cofre, cumeeira.

A mata é uma orquestra. Uma orquestração de milênios.

Tão grande era a fila que haveria tempo para aguardar, fora dela, a entrada para o concerto. Estamos no pátio do Theatro José de Alencar e a fila pode se estender em direção ao jardim, um jardim com vários tipos de palmeiras. Projeto de um jardineiro doido por música. Vamos, fora da fila, falando com quem não conhecemos, conversando com gente conhecida que vai aparecendo para os bons encontros não marcados, efêmeros e, feito brisa, inscritos na gente tão logo ocorram.

Um músico nos conta duas, três histórias tão bem-vindas quanto ele próprio em cena, tocando. Temos chão comum nós três: o amigo produtor também é de cortejar fila para ver algo que nos toca. Vamos dizendo banalidades. Do bonito que é o palco cheio: hoje tem mais de sessenta instrumentistas, e uma legião de bastidores acionada. Desde o transporte dos instrumentos de grande porte à engrenagem inteira da montagem, cadeira por cadeira, cada uma das partituras apoiada em cada estante, lâmpada por lâmpada, o ir e vir do trabalho a bem dizer invisível de mulheres e homens para tornar possível o que vamos ver, viver.

Tem criança por perto. Achamos bom. Elas nos lembram que podemos nos interessar pelo que não conhecemos. Passa uma menina (8 anos?) com o violino feito mochila e o músico nos diz do campo fértil que uma semente encontra ali. As crianças no modo bússola. Pergunto se ele foi iniciado criança. Não foi. Violão na adolescência e depois a faculdade de música na Uece. É da Uece a Banda Sinfônica que vamos ouvir.

Comento que adoraria saborear uma orquestra como um músico do naipe dele pode apreciar. Ele conta da primeira vez que tocou em orquestra. Participava de um festival na Paraíba: estudou, ensaiou dias e dias. Quando a orquestra começou a tocar, tomado pelo impacto, ele não tocou junto. Era todo ouvidos, imagino. Vivendo, de dentro, imerso como na mata. A vibrar. Somos passagens, talvez. Somos, passando.

Lembrei d'As Intermitências da morte. A morte para de matar no livro de Saramago. No seu ofício de colher as criaturas vivas, ela vem um dia buscar uma delas que, aplicada ao que está fazendo, não percebe a passagem da danada da morte. É um músico. Vou levar o livro para passear. Quem sabe a gente encontra de novo o Elismário Pereira, não é, Fabinho? E tomara que a Uece cuide bem de nossas formações que nascem lá. Precisamos de florestas e orquestras.

(*) Jornalista de O Povo.

Fonte: Publicado In: O Povo, de 26/11/23. Vida & Arte, p.2.

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