Por Izabel Gurgel (*)
Dedé de Zé de Liliza. Ouvi o nome no mercado de artesanato de
Icapuí. Apreciava o trabalho com madeira no desenho do espaço e perguntei sobre
a feitura. "Um carpinteiro naval. Dedé, da Casa de Cultura". O que
ressoa no mercado de uma cidade faz parte dela como uma inscrição geográfica.
"O da Cantata de Natal". Sua irmã caçula, Josilene me falaria, por
telefone, da Paixão de Cristo e outras artesanias. Dá vontade de ouvir também
Mauro de Jovi.
Do ancestral saber do ofício de construir para navegar, conta Dedé
(o filho) de Zé (o pai) de Liliza (a avó): "Fiz 68 barcos". A Casa de
Cultura Cores da Vida - Memorial José, Leny e Amigos é a mais viajante das suas
embarcações. Vira tatuagem, para dar coragem de seguir viagem, como na canção.
É grande o letreiro "Não fomos, não somos e nunca seremos
esquecidos". Como todo lugar e ato de celebrar a vida, a Casa no Centro de
Icapuí nasce de saber, sentindo, que a gente morre. Tem luto no caminho.
"Quer brincar?" é convite permanente, pintado na parede.
Dedé tem 60 e fica com faíscas nos olhos e seis anos de idade ao ver gente de
menos de oito a mais de 80 brincando, passeando, vivendo 'dentro' do sonho
dele: a Casa de Cultura é a imaginação dedéica trabalhada a mão. Sabe o museu
interior que cada qual leva consigo? A constelação de memórias, mar que nos
navega? O do Dedé transborda. Poeta das manualidades, o que ele mesmo não faz,
como as rendas de bilro e labirinto para enfeitar poltronas pausa e prosa,
encontra quem faça.
De 2019 até a abertura, a 5 de novembro de 2022, foram três anos e
três dias maquinando a calçada, os corredores e passagens, a bodega, as casas
dentro da Casa, os espaços a céu aberto, o engenho de fazer existir tudo ao
mesmo tempo agora.
Passados e futuros? Presentes. A Casa é quermesse, parque de
diversões, praia terreiro quintal, praça patamar palco, alpendre mirante,
escola biblioteca, ateliê oficina, jogo festa recreio. Dedé inventou um espaço
público para, entre lembrar e esquecer, dar refresco, ar fresco, à memória.
Poeta da Bahia (Dedé morou lá), Wally Salomão dizia a memória como ilha de
edição. Sabemos, você e eu, a gente se faz na cozinha do tempo.
Feitas por Leodécio, assinadas por Leo Rofi, as pinturas nas
paredes e outras superfícies são também travessia. Repare na casa branca de
alpendre reproduzida com rodapé cinza, janelas e portas azuis. Ela se prolonga
no palco onde se lê Forró de João Sabino. Pescador e salineiro, aos domingos,
Sabino ligava a radiola e fazia da sua casa salão de dança, para quem morasse
nas áreas ou estivesse de passagem. Segue vivo na Casa: o chão chia nas noites
de forró.
Entrelaçadas feito linha em rede de pesca, com vazios para realizar
melhor o destino de se tornar cheia, cada uma das milhares de peças da Casa
puxa conversa: brinquedo ferramenta de trabalho utensílio doméstico mobiliário
ornamento e um sortidíssimo etc. do que se inventa para sustentar, florir,
tornar fértil o cotidiano. Casa-fonte, é uma casa-conversa.
P.S.: Dona Leni, Seu Zé e Fátima, pais e irmã mais velha do Francisco
José de Freitas, vocês entenderam logo, não foi? A Casa é uma oração do Dedé
que saiu para fora. Acesa e bonita como pintura de barco.
(*) Jornalista de O Povo.
Fonte: Publicado In: O Povo, de 24/12/23. Vida & Arte, p.2.
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