Por Izabel Gurgel (*)
"O linho é uma
oração remota, nesse fluir fabril de fio para a flor". Um corte no
"Soneto à rendeira", do livro "A Barca dos Sentidos".
Francisco Carvalho, margeio Russas e você vem no vento. Que maravilha é ler
você. Acabei de ouvir "Aguapé", Belchior e Fagner. Encruzilhada das
águas: os rios Jaguaribe e Acaraú, o açude Orós.
Um amigo me contou que
ouviu Aguapé pela primeira vez passando por Russas. O cinema que é qualquer
estrada começaria ali, o dia amanhecendo. "O vento em disparada arranca as
plumas da paisagem". Escuto Francisco Carvalho. Miração da memória. Rezo
pelo poeta achando bom não ser ano de liturgia da seca. Meu amigo disse que o
motorista aumentou o volume do rádio: "Companheiro que passas pela
estrada, seguindo pelo rumo do sertão...". E outra vez o poeta de Russas:
"o silêncio é uma figura geométrica".
O carnaubal, a luz
desenhando devagar, e lembrou da Hannah Arendt segundo o Instagram, na
madrugada em Icó, antes da viagem. Sobre a perene advertência de que a gente,
embora deva morrer, a gente não nasce para morrer, mas para começar. Última
cerveja do bar ali no caminho antigo das boiadas, olhando para a Matriz de
Nossa Senhora da Expectação, o rio Salgado com Icó de costas para ele.
Belchior conversa com
Professor Pasquale, um programa de tv dos anos 1990, no YouTube. "Só a
lâmina da voz, sem a arma do braço". A palavra-navalha. A palo seco. João
Cabral de Melo Neto, de outro rio. Tão bom ouvir Belchior: "imenso
artesanato com que trato a feitura da letra", e o ruído da renda enchendo
a velha casa abandonada em Aguapé.
Castro Alves na canção.
"A Cruz da Estrada" é o título do poema. Vejo nos comentários no
YouTube. "A menina dos cabelos de capim" abre uma das gravações:
"Capineiro de meu pai Não me corte os meus cabelos Minha mãe me penteou
Minha madrasta me enterrou Pelo figo da figueira que o Passarim beliscou".
Seguem por Itaiçaba.
Outro poeta de Russas havia indicado o caminho. Por Itaiçaba, a passagem do rio
das pedras. É assim que fazem rumo ao mar. O mais perto fica em Aracati, nome
do vento que, banhado de mar, percorre os sertões dos cearás.
O vento. Os ventos.
Anunciadores. Da chuva, da ausência dela. Passam também anunciando morte,
ciciando pelas frestas, como conta outra casa velha, abandonada sob as águas.
"A Casa" do livro que Natércia Campos, bordadeira de linha e agulha,
teceu em silêncio, palavra por palavra, morando no Meireles da Fortaleza.
Francisco Carvalho outra
vez: "O vento arquejante assobia na estrada constelada de gritos". A
morte de um rebento é a coisa mais difícil para uma mãe contar. "Tive dez
filhos. Fátima morreu com seis meses, José com nove e Raimundinha com 7 anos".
A rendeira Francisca Elina de Sousa chama os sete sobreviventes de
"tesourinhos". Nasceu em 1941 em Areia Branca, no Rio Grande do
Norte. Seus pais migraram para o Ceará. Ela vive nas Pedrinhas, praia de
Itapipoca, nome que diz de pedra lascada, pedra rebentada. Repito o que já
contei por aqui: Dona Elina sonha fazendo renda. E escuta o bater dos bilros. O
ruído da renda é concreto. Feito o vento. E a poesia.
(*) Jornalista de O Povo.
Fonte: Publicado In: O Povo, de 14/04/24. Vida & Arte, p.2.
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