sexta-feira, 16 de agosto de 2024

COM O EXÉRCITO NÃO DÓI

Por Marcos Gurgel (*)

Como 2º Tenente R/2, do quadro de saúde, lotado no Hospital do Exército em Fortaleza, cedido ao quartel do 23º Batalhão de Caçadores, participei de uma ação cívico-social em um pequeno distrito de Caucaia, região metropolitana de Fortaleza.

Consultório de campanha montado, iniciei o meu trabalho no começo de uma bela manhã. Primeiro paciente, um falante que foi logo dizendo:

"Toda vez que o Exército vem aqui em extraio um dente; todo mundo aqui sabe que eu só extraio dente com o Exército, porque com o Exército não dói!". Posicionei o saltitante paciente na cadeira odontológica (de campanha, sem conforto), e comecei a trabalhar.

De cara, fraturei a corroa de um primeiro molar inferior, e então ouvi: "É sempre assim. Vá em frente Tenente, que eu sou descendente de índios e tenho os dentes muito duros".

Início de carreira, pouca experiência, corria o ano de 1978. Então pensei em me valer do Capitão-Chefe, mas não o encontrei... Convoquei então um esforçado soldado para me dar apoio e comecei o quebra-quebra, com cinzel e martelo.

Dava sempre uma paradinha e, preocupado, perguntava:

– Dói? – e lá vinha a resposta, incontinenti:

– Como Tenente, se com o Exército não dói?

Duas horas de luta, consegui o intento, mediquei e dispensei o paciente.

À noite, no acampamento, eu já deitado, eis que ouço o índio falante procurando o Tenente Gurgel. Pensei: meu Deus, o coitado deve estar morrendo de dor...

Com o coração em sobressalto me dirigi a ele e perguntei:

– Você está com algum problema? Está com muita dor? – e lá veio a resposta enfática:

– Não estou sentindo nada. Eu vim só saber do Senhor se posso arrancar o dente vizinho amanhã de manhã...

E repetiu o velho chavão:

– Dor que nada, Tenente. Com o Exército não dói!

(*) Marcos Maia Gurgel (05/07/1953 - 20/07/2024), odontólogo e escritor cearense (contador de histórias).

Postado por Paulo Gurgel no Blog Linha do Tempo em 2/08/2024.

http://gurgel-carlos.blogspot.com/2024/08/com-o-exercito-nao-doi.html

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