Por
Romeu Duarte Junior (*)
A Côca Torquato e Virgílio Maia
O que são pássaros senão flores que voam e
cantam? É a conclusão a que se chega quando se sai da exposição "Só para
ver-te agora são meus olhos", de Côca Torquato, em cartaz no Museu de Arte
da UFC (MAUC). São trabalhos em papel e porcelana, aquarelas delineadas a
nanquim e pinturas, os quais têm como tema a conjunção entre os bichos alados e
os rebentos florais, ora numa profusão de cores, ora com um grafismo quase
japonês. Autodidata e telúrica, Côca transita entre as suas memórias sertanejas,
reinventando-as e ampliando a sua potência. A poesia do seu marido Virgílio,
áspera e doce como uma fruta nordestina, certamente serve-lhe de inspiração na
feitura da sua arte. Há também traços do Movimento Armorial de Suassuna, tão
popular quanto erudito.
Mas vamos às flores e aos pássaros. Estes,
quase sempre aos pares, são recriações de indivíduos de nossa fauna aérea:
beija-flores, rolinhas caldo-de-feijão, gaviões, canários, corrupiões. Quanto à
flora, Côca nos traz a vegetação esgalhada da caatinga, as juremas pretas, os
cajueiros, as costelas-de-Adão, os urucuns. A construção dos planos das cenas
reflete um pleno domínio do contraste e do equilíbrio figurativos. Não há só o
espelhamento das figuras, mas também o sutil posicionamento delas em relação ao
fundo e aos demais elementos que compõem o quadro. A composição revela
igualmente o apuro geométrico na organização do que é exibido, considerando os
pesos dos vários componentes em cor, desenho, presença e movimento. Uma festa
para os olhos.
De forma perspicaz, a artista faz uso do
seu museu particular nas citações que realiza relativamente à arte rupestre,
riquíssimo acervo nosso ainda por conhecer e explorar, aos ferros de marcar
gado, objeto de pesquisa de Virgílio Maia e que acabou virando um belo livro
seu, e até à obra de Joan Miró, o artista surrealista catalão. Em suas
pinturas, os pássaros sugam o néctar e a seiva de flores e folhas para
alimentar o amor que compartilham aos beijos. Há momentos em que as figuras se
desmaterializam, tornando-se quase peças de design. O tratamento cromático é
livre, quer dizer, evidencia o desejo da pintora em ver as folhagens e as
plumagens com outros matizes que não os que a natureza nos oferece. Chama-se a
isso imaginação criadora, o transver, pessoal e indomável.
Diz-se que uma exposição de arte é boa
quando saímos dela melhor que entramos. O aguçamento dos modos de enxergar,
pensar e sentir, a percepção dos detalhes e sutilezas, no caso, o reencontro
com a delicadeza e a doçura num mundo tão difícil e violento como o que vivemos
hoje, realmente é uma benção e um privilégio. Foi o que experimentei ao final
da minha visita ao MAUC. Ao passar pela porta do museu, pensei de mim para
comigo: "Como essas obras serão percebidas pelas pessoas? Que tipo de
reflexão desenvolverão sobre elas?". A resposta às minhas perguntas estava
no catálogo, dada pela Profa. Aíla Sampaio: "É uma poética de imagens que
espera pelos olhos do público para ganhar, cada uma, sua própria
narrativa". Em cada cabeça, uma sentença...
(*) Arquiteto e
professor da UFC. Sócio do Instituto do Ceará. Colunista de O Povo.
Fonte: Publicado In: O Povo, de 31/03/25. Vida & Arte. p.2.
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