Por Ricardo
Alcântara (*)
Não há nada de novo sob o sol da Venezuela, logo percebe
quem lê notícias sobre o destino pretendido para o cadáver do (estadista para
uns, caudilho para outros) Hugo Chávez: expor o defunto à manipulação
necropsicótica da adoração pública.
A América latina forjou-se – para ser mais exato: foi
forjada – num processo de desenvolvimento tardio, mal reproduzindo modelos
produtivos e relações sociais quando estes já estavam em franco declínio ou
superados onde surgiram.
Talvez isto justifique nossa tragédia política: elaboramos
os desenhos do futuro com os signos do passado. Ao ver o arcaísmo bolivariano
de culto à personalidade, não há como deixar de perceber méritos na via
brasileira para a democracia.
As lideranças de Fernando Henrique e Lula da Silva – a parte
as nuances como cada um deles enfrentou os desafios de suas jornadas e as
contradições em que se enveredavam para impor seus programas de governo –
seguiram em outra direção.
Tais lideranças foram exercidas – e, a bem da verdade, Dilma
Rousseff avançou ainda mais – com uma contemporaneidade não percebida em outros
países do continente que adotaram modelos reformistas, com a peculiar exceção
do Uruguai.
Se não quisermos ir muito longe, basta observar o tratamento
dispensado pela presidente Cristina Kirchner à imprensa de seu país,
ameaçando-a para que silencie sobre o escandaloso enriquecimento de sua família
– o marido e ela.
No Equador, Bolívia e Venezuela governos de centro-esquerda
adotam políticas públicas de inegável impacto social, mas sob a regência de
relações populistas entre líder e massa, com fraca mediação e pouca autonomia
de outras instâncias.
Não se trata de negar o mérito: pela primeira vez em sua
história, persiste na América do sul a continuidade de governos reformistas sem
ameaças reais à ordem democrática, onde o combate à miséria é uma prioridade
que ultrapassa a retórica.
Trata-se, no entanto, de perceber a persistência de um
modelo arcaico, inflado por apelos personalistas, sem igual correspondência no
fortalecimento da organização civil e das instituições que sustentam a
democracia – ambas de frágil autonomia.
Os chavistas já têm sua múmia. Deitada, ela nada poderá
fazer para impedir que, sem sua liderança tutorial, o bolivarianismo – seja lá
o que isso queira dizer – vai ter que sentar-se à mesa sem as prerrogativas de
seu monopólio de virtudes.
O que isto quer dizer? Quer dizer que a esperança vai ter
que dialogar com a experiência. Quer dizer que o discurso redentorista perderá
parte de seu glamour, ampliando as obrigações do populismo com
resultados mais consistentes.
Estamos falando em ampliar a base produtiva, modernizar a
infraestrutura, estancar o crescimento constante nos gastos públicos e
qualificar o ensino superior, entre outras preocupações comuns a quem não
governa só para a torcida.
Morto, Hugo Chávez poderá dar mais esta contribuição:
permitir aos bolivarianos que se submetam aos desafios de ampliar sua base de
decisão e superar o discurso de que todos que estão contra eles querem espoliar
a Venezuela. Alguns não.
(*) Jornalista e
escritor. Publicado In: Pauta Livre.
Pauta Livre
é cão
sem dono. Se gostou, passe adiante.
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