quinta-feira, 14 de março de 2013

O CADÁVER DO FUTURO



Por Ricardo Alcântara (*)
Não há nada de novo sob o sol da Venezuela, logo percebe quem lê notícias sobre o destino pretendido para o cadáver do (estadista para uns, caudilho para outros) Hugo Chávez: expor o defunto à manipulação necropsicótica da adoração pública.
A América latina forjou-se – para ser mais exato: foi forjada – num processo de desenvolvimento tardio, mal reproduzindo modelos produtivos e relações sociais quando estes já estavam em franco declínio ou superados onde surgiram.
Talvez isto justifique nossa tragédia política: elaboramos os desenhos do futuro com os signos do passado. Ao ver o arcaísmo bolivariano de culto à personalidade, não há como deixar de perceber méritos na via brasileira para a democracia.
As lideranças de Fernando Henrique e Lula da Silva – a parte as nuances como cada um deles enfrentou os desafios de suas jornadas e as contradições em que se enveredavam para impor seus programas de governo – seguiram em outra direção.
Tais lideranças foram exercidas – e, a bem da verdade, Dilma Rousseff avançou ainda mais – com uma contemporaneidade não percebida em outros países do continente que adotaram modelos reformistas, com a peculiar exceção do Uruguai.
Se não quisermos ir muito longe, basta observar o tratamento dispensado pela presidente Cristina Kirchner à imprensa de seu país, ameaçando-a para que silencie sobre o escandaloso enriquecimento de sua família – o marido e ela.
No Equador, Bolívia e Venezuela governos de centro-esquerda adotam políticas públicas de inegável impacto social, mas sob a regência de relações populistas entre líder e massa, com fraca mediação e pouca autonomia de outras instâncias.
Não se trata de negar o mérito: pela primeira vez em sua história, persiste na América do sul a continuidade de governos reformistas sem ameaças reais à ordem democrática, onde o combate à miséria é uma prioridade que ultrapassa a retórica.
Trata-se, no entanto, de perceber a persistência de um modelo arcaico, inflado por apelos personalistas, sem igual correspondência no fortalecimento da organização civil e das instituições que sustentam a democracia – ambas de frágil autonomia.
Os chavistas já têm sua múmia. Deitada, ela nada poderá fazer para impedir que, sem sua liderança tutorial, o bolivarianismo – seja lá o que isso queira dizer – vai ter que sentar-se à mesa sem as prerrogativas de seu monopólio de virtudes.
O que isto quer dizer? Quer dizer que a esperança vai ter que dialogar com a experiência. Quer dizer que o discurso redentorista perderá parte de seu glamour, ampliando as obrigações do populismo com resultados mais consistentes.
Estamos falando em ampliar a base produtiva, modernizar a infraestrutura, estancar o crescimento constante nos gastos públicos e qualificar o ensino superior, entre outras preocupações comuns a quem não governa só para a torcida.
Morto, Hugo Chávez poderá dar mais esta contribuição: permitir aos bolivarianos que se submetam aos desafios de ampliar sua base de decisão e superar o discurso de que todos que estão contra eles querem espoliar a Venezuela. Alguns não.
(*) Jornalista e escritor. Publicado In: Pauta Livre.
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