sexta-feira, 29 de março de 2013

SEMANA SANTA NA FORTALEZA DOS ANOS CINQUENTA



Aquelas pessoas que alcançaram a terceira idade, ou que estão bem próximo de se tornarem “sexyagenários”, lembram, certamente, do clima sombrio do período da paixão, que assinalava o calendário litúrgico católico.
Vivenciava-se à época, o que era uma celebração judaica, do Antigo Testamento, conforme o ritual do pessach, ou, simplesmente, a passagem, quando os cativos hebreus comeram, em família, o pão ázimo, sem fermento, na véspera de sua partida do Egito, após longos anos de escravidão, para regressarem à Terra Prometida.
A coincidência do aprisionamento, do julgamento e da execução de Cristo, durante a pessach hebraica, trouxe um outro significado, diante do reconhecimento de que Cristo era o Messias, o enviado de Deus, o Filho do Homem, anunciado por vários profetas do povo judeu.
Esse reconhecimento, levando à conversão ao cristianismo, de muitos judeus e tantos gentios, encontra guarida nos escritos dos evangelistas e nos atos dos apóstolos, ensejou a segunda parte do Livro Sagrado, um novo documento, qual seja, o Novo Testamento.
Na Fortaleza dos anos cinquenta, do século XX, o fervor religioso dos moradores desta capital acentuava-se no tempo da quaresma, atingindo o seu ápice no período pascal. As famílias jejuavam e faziam abstinência de carne, em obediência aos ditames religiosos. As pessoas pagavam penitências, evitavam o cometimento de pecados, inclusive os veniais, e realizavam boas ações em troca das indulgências que poderiam ganhar, livrando-as do fogo do inferno, ou, pelo menos, diminuindo a permanência no purgatório.
Como medidas de interesse popular, várias práticas eram adotadas para rememorar a Paixão e Morte de Jesus Cristo, extrapolando os atos litúrgicos oficiais, como a projeção de filmes com teor bíblico, a transmissão radiofônica de músicas e mensagens religiosas, e a encenação teatral relacionada à Páscoa de Nosso Senhor, revivendo todo o sofrimento Dele, pregado na cruz.
Durante a Semana Santa, que se iniciava no Domingo de Ramos, quando várias procissões circulavam nas ruas adjacentes de cada paróquia, não havia aulas nas escolas de Fortaleza. Na quarta-feira de trevas já não se fazia mais casamentos nas igrejas católicas, que eram, temporariamente, fechadas. Nos altares, os santos eram cobertos por um tecido roxo, assim como o sacrário, onde ficava guardado o ostensório. O ambiente era de uma mudez total, em sinal de luto. Na sexta-feira santa havia a procissão do Senhor Morto. Somente no sábado de aleluia é que ela voltava a ser aberta, para cumprir o ritual da páscoa. Era comum fazer a via sacra, indo de uma casa a outra, no centro da cidade, percorrendo as 14 estações. Na madrugada do domingo, a matraca começava a troar, anunciando a Missa da Ressurreição.
O Cine Familiar, de propriedade dos frades franciscanos, situado vizinho à Igreja Nossa Senhora das Dores, no bairro Otávio Bonfim, exibia, a cada hora, “A Paixão de Cristo”, uma película em preto e branco, e sem falas; para assisti-la se formavam longas filas à entrada; o sofrimento do crucificado parecia transformar a assistência, pois as pessoas saíam do cinema comovidas e até enxugando as lágrimas vertidas durante a projeção.
Todos os anos repetia-se a mesma coisa: nas emissoras de rádio, transmitia-se um programa específico, criado pela Rádio Nacional, e considerado o maior trabalho do radioteatro brasileiro: “A Paixão de Cristo”, um clássico com três horas de duração, na sexta-feira da paixão, no qual o compositor e ator Roberto Faissal, possuidor de uma belíssima voz, pronunciava palavras saídas da boca de Cristo. No ambiente doméstico, tendo ao centro um velho rádio, gravitavam ao seu redor os radiouvintes, prontos para ouvir e se comover, diante daquela voz carregada de emoção.
Nos salões paroquiais, fazia-se a leitura ou se representavam cenas da Paixão, por grupos amadores, e até nos teatros, espetáculos, com mais recursos e usando atores experientes, eram encenados, para deleite (e sofrimento) do público cristão.
Era assim que a Semana Santa acontecia, nos meados do século que passou, nesta Fortaleza abençoada por Nossa Senhora da Assunção.
Marcelo Gurgel Carlos da Silva
Membro da Sociedade Médica São Lucas
marcelo.gurgel@uece.br
* Publicado In: O Povo, de 26/03/13. Jornal do Leitor. p.1.

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