sexta-feira, 8 de julho de 2016

DOCTA SPES


Por Carlo Tursi (*)
No entanto, não sou otimista: não embarco na ilusão de que tudo vai terminar bem. Sou antes esperançoso.
A princípio, é preciso saudar todo sonho diurno, por mais alienado e escapista que seja. Pois aponta para além do que está aí, abre horizontes, areja. Artigo primeiro do meu Credo: a imaginação nos foi dada para vislumbrar uma vida melhor, individual e coletiva. Para transcender um status quo insatisfatório, precário, injusto.
Há 30 anos, escolhi viver neste país. No entanto, ainda consigo imaginar um Brasil melhor do que temos conseguido construir nessas três décadas. Sem dúvida, acabei me acostumando um bocado, imitando meus vizinhos, com as tantas mazelas sociais e o descalabro da gestão pública. Talvez o lento transitar para a indiferença faça parte da enculturação... Contudo, meu sonho está vivo, minha utopia continua de pé: tenho esperança de ver o Estado Brasileiro assumir, de vez e não titubeante, a responsabilidade pelo bem-estar social, corrigindo a gritante desigualdade de chances e oportunidades entre nós. Repudio a tese de que todo político é corrupto, que a cultura política brasileira é irremediavelmente patrimonialista, condenada a confundir para sempre o público com o privado.
Não aceito ser preciso consumir desenfreadamente para manter girando a roda de uma economia que não funciona “para que todos tenham vida, e vida plena”, mas busca apenas lucro. Creio ser possível uma democratização do acesso aos bens fundamentais para a vida coletiva: à terra, à água, à energia. Prefiguro uma cidade com menos carros, mais ciclistas, pedestres e um bom transporte público.
No entanto, não sou otimista: não embarco na ilusão de que tudo vai terminar bem. Sou antes esperançoso: percebo, na teia da realidade, as condições embrionárias para que a superação da atual crise sistêmica aconteça em direção ao aprofundamento das nossas conquistas sociais. Registro, angustiado, também a possibilidade real do retrocesso: Estado do “vigilante noturno” e do laissez-faire econômico, precarização dos direitos trabalhistas, fundamentalismo cristão na esfera pública, acirramento do ódio ideológico.
Preciso me engajar, então, pelo projeto de futuro em que acredito. É o que distingue a razão utópica dos meros devaneios, das fantasias irreais: conhecimento lúcido de um ainda-não-concretizado, a espera de potenciais realizadores. Visionários sóbrios: cabeça nas nuvens, pés no chão. Docta spes – esperança esclarecida, pensante – dizia Ernst Bloch. Sou partidário dela.
 (*) Professor e teólogo alemão.
Fonte: O Povo, de 17/01/2016. Opinião. p.9.

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