Por DAVID COHEN|
DO DESERTO DA
JUDEIA
O país quer se tornar um polo mundial do canto
lírico e passou a fazer espetáculos grandiosos no meio do deserto. O que o
Brasil tem a aprender com esse projeto cultural
Ao meio-dia,
caminhando uns minutos entre beduínos sob o sol escaldante do Deserto da
Judeia, sua garganta percebe que falar é um esforço – e cantar, então, é uma
temeridade. Quando o guia conta que um dos maiores perigos, ali, é ser tragado
pelas águas (as chuvas, quando caem, fabricam enxurradas que podem esmagar os
incautos nos labirintos do cânion), você quase deseja que isso aconteça.
GRANDIOSIDADE A apresentação da Tosca, de Giacomo Puccini, em junho,
no Deserto da Judeia. Sítios históricos servem como cenário natural para a
ópera (Foto: Divulgação)
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Pois é justamente
esse local que Israel quer
transformar em uma das terras prometidas para os amantes de ópera. Nesse
cenário, segundo a Bíblia, Moisés vagou durante 40 anos com o povo que
resgatara da escravidão no Egito.
Hanna Munitz, a diretora-geral da Ópera Israelense, espera que seu projeto não
demore tanto. Por isso, o governo de Israel gastou, neste ano, 25 milhões de
shekels (R$ 22 milhões) para apresentar, em junho, a quinta edição do programa Ópera
em Massada.
A ideia é alavancar
um ambicioso projeto de popularização da ópera no país, com múltiplas
iniciativas, como a proliferação de festivais, a formação de autores nacionais,
a educação de crianças, o estímulo a jovens artistas e a expansão da arte para
cidades distantes. “Queremos
abrir uma nova veia de turismo”, diz Hanna.
“As pessoas costumam vir a Israel para
visitar os lugares santos. Queremos que uma parcela venha pela música.” Também é uma questão de imagem. Quando Israel ocupa o
noticiário internacional, na maioria das vezes é por causa do conflito com os
palestinos. Para consumo externo e interno, é interessante fortalecer a
identidade artístico-cultural. “Queremos
mostrar que estamos tentando levar uma vida normal aqui”, disse Hanna.
Embora ainda seja
muito cedo para apresentar resultados, convém prestar atenção ao investimento
de Israel na ópera. Afinal, os israelenses são calejados em lidar com
restrições: montaram, na década de 1960, uma potente agricultura em clima
desértico, com base em técnicas revolucionárias de irrigação; tornaram-se, na
virada do milênio, a população com maior número de startups por habitante,
quase uma empresa para cada 2 mil cidadãos; e têm reduzido sua dependência dos
parcos reservatórios de água doce na Galileia, pelo avanço dos processos de
dessalinização. O modo como estão implantando seu projeto cultural pode servir
de exemplo para países como o Brasil, pobres em produção e consumo da arte
clássica.
“É
muito difícil cooperar”
A Ópera de Massada
é o show mais complexo já montado no país. A partir de nada mais que pedras e
areia, trabalha-se durante três meses para erguer um palco de 2.200 metros
quadrados e um auditório com cerca de 7 mil cadeiras, além de uma avenida com
cenários para dar, desde a entrada, uma ambientação relacionada à peça (no
caso, a ópera Tosca, de Giacomo Puccini, passada na Roma do ano
1800). É trabalho para 2.500 pessoas, fora as 800 contratadas da Ópera, para
apenas seis apresentações – quatro de Tosca e duas da cantata Carmina
Burana, do alemão Carl Orff.
As condições locais
são tão desafiadoras que Hanna desistiu de tentar parcerias. Na segunda edição
do evento, ela ensaiou uma sinergia com o festival de Orange, no sul da
França. “Descobrimos que é muito difícil cooperar”, disse. Os cenários não se
adequavam, a estrutura tinha de ser diferente. “Nossos desafios não se comparam aos
dos outros, pela areia, pela montanha…”
Por que então
escolher uma sede tão inóspita? Marketing. Hanna estudou os casos de sucesso de
espetáculos a céu aberto – Verona, na Itália; Bregenz, na Áustria; Santa Fé, no
deserto do Novo México, nos Estados Unidos – e concluiu que aí estava uma
oportunidade de atrair público: aproveitar os sítios históricos da Terra Santa.
A montanha de Massada tinha a dupla vantagem de estar em uma região com boa
disponibilidade de hotéis (graças à proximidade com o Mar Morto) e de ser um
lugar impactante, com significado histórico. Ali, na fortaleza construída por
Herodes, rebeldes extremistas hebreus montaram um bastião de resistência contra
a ocupação de Roma, até que, no ano 73 d.C., uma guarnição romana cercou o
local. Quando os soldados entraram ali, porém, só havia corpos, com exceção de
duas mulheres e cinco crianças. Os quase 1.000 rebeldes, segundo o relato do
historiador Flávio Josefo, haviam feito um pacto de suicídio, preferindo
morrer a servir como escravos.
De fato, a montanha
funciona como um elemento de grandiosidade. Casou perfeitamente, por exemplo,
com a cena final da Tosca: quando a heroína se atira para a morte para
não ser presa, a iluminação destacava, ao fundo, a montanha que simboliza essa
mesma escolha.
“Você
sempre consegue fazer música”
Montar a estrutura
no meio do nada é apenas a primeira das dificuldades. Outro obstáculo é o
deserto em si, pouco convidativo para cantores de ópera acostumados a ter as
melhores condições para polir a voz. “Não é todo artista que aceita vir
para cá, ficar em camarins improvisados como se estivéssemos num acampamento”, disse Daniel
Oren, condutor da orquestra, um israelense que já regeu várias das principais
orquestras de ópera do mundo, principalmente as italianas, e é hoje o diretor
artístico da Casa de Ópera Verdi, em Salerno. “Mas todos os cantores e músicos estão
muito felizes de estar aqui.”
Oren afirmou que neste ano a
amplificação do som estava funcionando melhor (num espaço tão amplo, os
cantores precisam recorrer a microfones, e a produção inclui telões para a
plateia ver a cara dos protagonistas). “Você sempre consegue fazer música. Não é como
num teatro, com acústica, com ambiente controlado. Mas, se você perde algumas
coisas, ganha outras”, diz. O quê? “Esta emoção do ambiente.” E como se faz para que o vento carregado de areia não estrague as
apresentações? “Nós rezamos para Deus.” Talvez as rezas estejam funcionando. O festival tem obtido uma média
de quase 40 mil espectadores, sendo cerca de 10% de estrangeiros. A maioria é
gente que não está acostumada a assistir a óperas.
EMOÇÃO NO DESERTO Um ensaio da Tosca da Ópera de Massada. Um show de
enorme complexidade, que atrai 40
mil espectadores (Foto: Dan Porges/Getty Images)
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Vinde
a mim as criancinhas
Para tornar-se um
polo operístico, Israel está seguindo algumas das práticas estabelecidas há
décadas por países que conseguiram dar um salto de qualidade na arte. O
primeiro ponto é criar público. Para isso, a melhor maneira é apostar nas
crianças. Na Inglaterra, durante o esforço de ajuste de contas no ano passado,
o governo determinou que só não sofreriam cortes os programas municipais que
estivessem atingindo as metas de atrair mais crianças para a ópera. Na
Austrália, a Ópera faz um programa educacional em que apresenta versões
reduzidas dos espetáculos por todo o país. Em 2014, foram mais de 150
apresentações em 120 escolas primárias.
Mozart
para multidões
Em Israel, desde
2001 a Ópera nacional leva produções para as cidades menores, nos moldes do
programa australiano. Em geral, vão os artistas principais. Os demais são substituídos
por participantes do coro local, normalmente crianças. Também são feitas
produções especiais para a garotada, como uma versão de A flauta mágica,
traduzida e cantada em hebraico e apresentada de manhã, para atrair as
famílias. (Cantar em hebraico, uma língua mais gutural, é uma dificuldade
extra; mas Mozart, quando começou a escrever óperas para serem cantadas em
alemão, teve de desafiar o dogma de que apenas o italiano se prestava ao
canto.) Até a Casa da Ópera, inaugurada em 1994 em Tel Aviv, com 1.500
poltronas, foi construída levando em consideração a necessidade de cativar as
crianças. No salão de entrada da Casa há uma arquibancada de formas
arredondadas, onde as crianças assistem a apresentações especiais.
“Os
judeus não têm tradição de cantar”
Além das crianças,
Israel aposta nas camadas sociais mais pobres. O festival de Massada foi
televisionado e transmitido ao vivo para três cidades da região. Tenta-se, ao
máximo, conjugar a ópera a tradições locais. Assim, o coro de crianças
da Tosca foi interpretado por um coro de crianças beduínas.
Também há um
esforço de estimular a produção local de óperas. Desde 2005, a cada cinco anos
a Ópera Israelense encomenda a autores nacionais uma peça original, em
hebraico. Neste mês de julho, serão encenadas duas produções de autores
israelenses. As peças, depois de sua temporada normal, vão correr o país em
versões reduzidas.
Talvez a lição mais
importante do projeto israelense seja construir a partir de suas forças. “Os judeus não têm
tradição de cantar”, diz Hanna. “Os judeus, especialmente os de ascendência europeia, põem os filhos para
tocar piano ou violino.” Nessa tradição da música, ela quer ancorar o canto.
Outra força do país
é sua história. Por isso a aposta tão forte em espetáculos a céu aberto,
aproveitando os locais deslumbrantes, já carregados de significado. Esse
esforço ainda pode levar décadas para frutificar. Mas Israel, a exemplo do
Reino Unido, dos Estados Unidos, da Austrália, faz um investimento impetuoso,
abrangente e consistente. Provavelmente, terá sucesso maior que países que
fazem investimentos tíbios, localizados e esporádicos.
Fonte:
Época, N 891 20/7/15
p.72-5.
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