quarta-feira, 17 de agosto de 2016

ISRAEL, A NOVA TERRA PROMETIDA DA ÓPERA


Por DAVID COHEN|
DO DESERTO DA JUDEIA
O país quer se tornar um polo mundial do canto lírico e passou a fazer espetáculos grandiosos no meio do deserto. O que o Brasil tem a aprender com esse projeto cultural
Ao meio-dia, caminhando uns minutos entre beduínos sob o sol escaldante do Deserto da Judeia, sua garganta percebe que falar é um esforço – e cantar, então, é uma temeridade. Quando o guia conta que um dos maiores perigos, ali, é ser tragado pelas águas (as chuvas, quando caem, fabricam enxurradas que podem esmagar os incautos nos labirintos do cânion), você quase deseja que isso aconteça.
GRANDIOSIDADE A apresentação da Tosca, de Giacomo Puccini, em junho, no Deserto da Judeia. Sítios históricos servem como cenário natural para a ópera (Foto: Divulgação)
 
Pois é justamente esse local que Israel quer transformar em uma das terras prometidas para os amantes de ópera. Nesse cenário, segundo a Bíblia, Moisés vagou durante 40 anos com o povo que resgatara da escravidão no Egito. Hanna Munitz, a diretora-geral da Ópera Israelense, espera que seu projeto não demore tanto. Por isso, o governo de Israel gastou, neste ano, 25 milhões de shekels (R$ 22 milhões) para apresentar, em junho, a quinta edição do programa Ópera em Massada.
A ideia é alavancar um ambicioso projeto de popularização da ópera no país, com múltiplas iniciativas, como a proliferação de festivais, a formação de autores nacionais, a educação de crianças, o estímulo a jovens artistas e a expansão da arte para cidades distantes. “Queremos abrir uma nova veia de turismo”, diz Hanna. “As pessoas costumam vir a Israel para visitar os lugares santos. Queremos que uma parcela venha pela música.” Também é uma questão de imagem. Quando Israel ocupa o noticiário internacional, na maioria das vezes é por causa do conflito com os palestinos. Para consumo externo e interno, é interessante fortalecer a identidade artístico-cultural. “Queremos mostrar que estamos tentando levar uma vida normal aqui”, disse Hanna.
Embora ainda seja muito cedo para apresentar resultados, convém prestar atenção ao investimento de Israel na ópera. Afinal, os israelenses são calejados em lidar com restrições: montaram, na década de 1960, uma potente agricultura em clima desértico, com base em técnicas revolucionárias de irrigação; tornaram-se, na virada do milênio, a população com maior número de startups por habitante, quase uma empresa para cada 2 mil cidadãos; e têm reduzido sua dependência dos parcos reservatórios de água doce na Galileia, pelo avanço dos processos de dessalinização. O modo como estão implantando seu projeto cultural pode servir de exemplo para países como o Brasil, pobres em produção e consumo da arte clássica.
“É muito difícil cooperar”
A Ópera de Massada é o show mais complexo já montado no país. A partir de nada mais que pedras e areia, trabalha-se durante três meses para erguer um palco de 2.200 metros quadrados e um auditório com cerca de 7 mil cadeiras, além de uma avenida com cenários para dar, desde a entrada, uma ambientação relacionada à peça (no caso, a ópera Tosca, de Giacomo Puccini, passada na Roma do ano 1800). É trabalho para 2.500 pessoas, fora as 800 contratadas da Ópera, para apenas seis apresentações – quatro de Tosca e duas da cantata Carmina Burana, do alemão Carl Orff.
As condições locais são tão desafiadoras que Hanna desistiu de tentar parcerias. Na segunda edição do evento, ela ensaiou uma sinergia com o festival de Orange, no sul da França. “Descobrimos que é muito difícil cooperar”, disse. Os cenários não se adequavam, a estrutura tinha de ser diferente. “Nossos desafios não se comparam aos dos outros, pela areia, pela montanha…
Por que então escolher uma sede tão inóspita? Marketing. Hanna estudou os casos de sucesso de espetáculos a céu aberto – Verona, na Itália; Bregenz, na Áustria; Santa Fé, no deserto do Novo México, nos Estados Unidos – e concluiu que aí estava uma oportunidade de atrair público: aproveitar os sítios históricos da Terra Santa. A montanha de Massada tinha a dupla vantagem de estar em uma região com boa disponibilidade de hotéis (graças à proximidade com o Mar Morto) e de ser um lugar impactante, com significado histórico. Ali, na fortaleza construída por Herodes, rebeldes extremistas hebreus montaram um bastião de resistência contra a ocupação de Roma, até que, no ano 73 d.C., uma guarnição romana cercou o local. Quando os soldados entraram ali, porém, só havia corpos, com exceção de duas mulheres e cinco crianças. Os quase 1.000 rebeldes, segundo o relato do historiador Flávio Josefo, haviam feito um pacto de suicídio, preferindo morrer a servir como escravos.
De fato, a montanha funciona como um elemento de grandiosidade. Casou perfeitamente, por exemplo, com a cena final da Tosca: quando a heroína se atira para a morte para não ser presa, a iluminação destacava, ao fundo, a montanha que simboliza essa mesma escolha.
“Você sempre consegue fazer música”
Montar a estrutura no meio do nada é apenas a primeira das dificuldades. Outro obstáculo é o deserto em si, pouco convidativo para cantores de ópera acostumados a ter as melhores condições para polir a voz. “Não é todo artista que aceita vir para cá, ficar em camarins improvisados como se estivéssemos num acampamento”, disse Daniel Oren, condutor da orquestra, um israelense que já regeu várias das principais orquestras de ópera do mundo, principalmente as italianas, e é hoje o diretor artístico da Casa de Ópera Verdi, em Salerno. “Mas todos os cantores e músicos estão muito felizes de estar aqui.
Oren afirmou que neste ano a amplificação do som estava funcionando melhor (num espaço tão amplo, os cantores precisam recorrer a microfones, e a produção inclui telões para a plateia ver a cara dos protagonistas). “Você sempre consegue fazer música. Não é como num teatro, com acústica, com ambiente controlado. Mas, se você perde algumas coisas, ganha outras”, diz. O quê? “Esta emoção do ambiente.” E como se faz para que o vento carregado de areia não estrague as apresentações? “Nós rezamos para Deus.” Talvez as rezas estejam funcionando. O festival tem obtido uma média de quase 40 mil espectadores, sendo cerca de 10% de estrangeiros. A maioria é gente que não está acostumada a assistir a óperas.
EMOÇÃO NO DESERTO Um ensaio da Tosca da Ópera de Massada. Um show de enorme complexidade, que  atrai 40 mil  espectadores (Foto: Dan Porges/Getty Images)
 
Vinde a mim as criancinhas
Para tornar-se um polo operístico, Israel está seguindo algumas das práticas estabelecidas há décadas por países que conseguiram dar um salto de qualidade na arte. O primeiro ponto é criar público. Para isso, a melhor maneira é apostar nas crianças. Na Inglaterra, durante o esforço de ajuste de contas no ano passado, o governo determinou que só não sofreriam cortes os programas municipais que estivessem atingindo as metas de atrair mais crianças para a ópera. Na Austrália, a Ópera faz um programa educacional em que apresenta versões reduzidas dos espetáculos por todo o país. Em 2014, foram mais de 150 apresentações em 120 escolas primárias.
Mozart para multidões
Em Israel, desde 2001 a Ópera nacional leva produções para as cidades menores, nos moldes do programa australiano. Em geral, vão os artistas principais. Os demais são substituídos por participantes do coro local, normalmente crianças. Também são feitas produções especiais para a garotada, como uma versão de A flauta mágica, traduzida e cantada em hebraico e apresentada de manhã, para atrair as famílias. (Cantar em hebraico, uma língua mais gutural, é uma dificuldade extra; mas Mozart, quando começou a escrever óperas para serem cantadas em alemão, teve de desafiar o dogma de que apenas o italiano se prestava ao canto.) Até a Casa da Ópera, inaugurada em 1994 em Tel Aviv, com 1.500 poltronas, foi construída levando em consideração a necessidade de cativar as crianças. No salão de entrada da Casa há uma arquibancada de formas arredondadas, onde as crianças assistem a apresentações especiais.
“Os judeus não têm tradição de cantar”
Além das crianças, Israel aposta nas camadas sociais mais pobres. O festival de Massada foi televisionado e transmitido ao vivo para três cidades da região. Tenta-se, ao máximo, conjugar a ópera a tradições locais. Assim, o coro de crianças da Tosca foi interpretado por um coro de crianças beduínas.
Também há um esforço de estimular a produção local de óperas. Desde 2005, a cada cinco anos a Ópera Israelense encomenda a autores nacionais uma peça original, em hebraico. Neste mês de julho, serão encenadas duas produções de autores israelenses. As peças, depois de sua temporada normal, vão correr o país em versões reduzidas.
Talvez a lição mais importante do projeto israelense seja construir a partir de suas forças. “Os judeus não têm tradição de cantar”, diz Hanna. “Os judeus, especialmente os de ascendência europeia, põem os filhos para tocar piano ou violino.” Nessa tradição da música, ela quer ancorar o canto.
Outra força do país é sua história. Por isso a aposta tão forte em espetáculos a céu aberto, aproveitando os locais deslumbrantes, já carregados de significado. Esse esforço ainda pode levar décadas para frutificar. Mas Israel, a exemplo do Reino Unido, dos Estados Unidos, da Austrália, faz um investimento impetuoso, abrangente e consistente. Provavelmente, terá sucesso maior que países que fazem investimentos tíbios, localizados e esporádicos.
Fonte: Época, N 891 20/7/15 p.72-5.
 
 
 
 

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