domingo, 4 de setembro de 2016

A CRÔNICA: O crime do Padre Amaro

Meraldo Zisman (*)
Médico-Psicoterapeuta
Lembro ao leitor que o nome desta “croniqueta” foi copiado de um romance do consagrado escritor José Maria d’Eça de Queirós (1845-1900), considerado como o primeiro romance realístico da língua de Camões. Romance esse que chocou a sociedade da época com sua denúncia da hipocrisia social e religiosa. Novela anticlerical das mais ferozes, ambientada em Leiria, onde o Padre Amaro Vieira, ingênuo e psicologicamente fraco, vai assumir sua paróquia. Hospedando-se na casa da Senhora Joaneira, acaba por se envolver sexualmente com sua filha, Amélia. Amaro conhece, então, o cinismo dos seus colegas, que em nada estranham sua relação com a jovem.
Grávida, Amélia acaba por morrer no parto e Amaro entrega a criança a uma “tecedeira de anjos”. Morta também a criança, Amaro, agora um cínico descarado, prossegue com a sua carreira. O romance, que critica violentamente a vida provinciana e o comportamento do clero, foi, durante décadas, leitura proibida em muitas escolas de Portugal e do Brasil. A nossa historieta do Crime do Padre Amaro é diferente da homônima escrita pelo Eça de Queirós.
Nasceu o nosso pároco nordestino na cidade de Vitória de Santo Antão, onde se encontra a fábrica de cachaça Pitu. Cachaça, destaco, de renome nacional e internacional. Mas isto não vem o caso, pois o nosso padre Amaro era um abstêmio, um vocacionado. Vinho, somente o de missa – e na missa.
Nascido em modesta família de cortadores de cana, bom aluno e com a ajuda da professora municipal, foi ser seminarista para poder formar-se e iniciar uma carreira.
No Seminário sentiu a sua vocação religiosa e entregou-se a ela, de corpo e alma, como dizem por aí. E, não se arrependeu! Era a sua verdadeira vocação. Parece que o povo sente o verdadeiro sacerdote e o amava pela sua brandura, humildade e humanidade. Os compromissos não tinham fim: era uma missa aqui, um casamento acolá, batizados e outras obrigações sacerdotais. Padre Amaro não parava. Estava sempre presente para distribuir uma palavra, um gesto consolador, à sua gente sofredora. Bastante contar que, além de todas as ocupações e correrias, ainda se dedicava a alfabetização de pessoas adultas.
Dia desses, um domingo, a sua agenda estava, como sempre, lotada. Além das três missas celebradas, programou uma visita a uma ex-paroquiana que não mais residia na sua freguesia. Acabada a última missa, tomou o carro e seguiu para Olinda, cidade onde passara a residir à devota senhora que solicitava suas atenções psicoreligiosas (portadora de câncer terminal).
Vinha o sacerdote dirigindo normalmente quando foi parado por uma blitz da Polícia Rodoviária. Não costumava envergar batina, tinha apenas um crucifixo na lapela que indicava ser ele um religioso, um homem de Deus. Padre Amaro era do tipo nordestino, franzino e de tez amarelada, certamente devido à fome ancestral e à verminose, companheiras constantes de seus anos de infância. Não foi reconhecido pela autoridade como o mui querido e popular Padre Amaro. Apesar das suas alegações de ser um sacerdote, não teve jeito:
Lei é Lei, a Lei é para todos, disparou o garboso defensor da ordem e dos… Códigos.
O Padre teve que soprar no bafômetro. Não deu outra. Teor alcoólico, presente. Preso em flagrante delito (o nosso popular “teje preso”), foi para a delegacia. Não importa se o vinho era vinho de missa. O pobre do padre Amaro foi autuado em flagrante. Foi o Crime do Padre Amaro, servidor da Arquidiocese de Olinda e Recife. É isso aí… Dura lex, sede lex. Principalmente no Nordeste.
Moral da História: História repete-se sempre, pelo menos duas vezes - disse Hegel. Karl Marx acrescentou … a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa... Será?
Desculpe Qualquer Coisa (Crônicas de um Médico Judeu Pernambucano) – Ed. Livro Rápido Olinda-PE. 2010.

(*) Professor Titular da Pediatria da Universidade de Pernambuco. Psicoterapeuta. Membro da Sobrames/PE, da União Brasileira de Escritores (UBE) e da Academia Brasileira de Escritores Médicos (ABRAMES).

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