Meraldo Zisman (*)
Médico-Psicoterapeuta
Lembro
ao leitor que o nome desta “croniqueta” foi copiado de um romance do consagrado
escritor José Maria d’Eça de Queirós (1845-1900), considerado como o primeiro
romance realístico da língua de Camões. Romance esse que chocou a sociedade da
época com sua denúncia da hipocrisia social e religiosa. Novela anticlerical
das mais ferozes, ambientada em Leiria, onde o Padre Amaro Vieira, ingênuo e
psicologicamente fraco, vai assumir sua paróquia. Hospedando-se na casa da
Senhora Joaneira, acaba por se envolver sexualmente com sua filha, Amélia. Amaro
conhece, então, o cinismo dos seus colegas, que em nada estranham sua relação
com a jovem.
Grávida,
Amélia acaba por morrer no parto e Amaro entrega a criança a uma “tecedeira de
anjos”. Morta também a criança, Amaro, agora um cínico descarado, prossegue com
a sua carreira. O romance, que critica violentamente a vida provinciana e o
comportamento do clero, foi, durante décadas, leitura proibida em muitas
escolas de Portugal e do Brasil. A nossa historieta do Crime do Padre Amaro é
diferente da homônima escrita pelo Eça de Queirós.
Nasceu
o nosso pároco nordestino na cidade de Vitória de Santo Antão, onde se encontra
a fábrica de cachaça Pitu. Cachaça, destaco, de renome nacional e
internacional. Mas isto não vem o caso, pois o nosso padre Amaro era um
abstêmio, um vocacionado. Vinho, somente o de missa – e na missa.
Nascido
em modesta família de cortadores de cana, bom aluno e com a ajuda da professora
municipal, foi ser seminarista para poder formar-se e iniciar uma carreira.
No
Seminário sentiu a sua vocação religiosa e entregou-se a ela, de corpo e alma,
como dizem por aí. E, não se arrependeu! Era a sua verdadeira vocação. Parece
que o povo sente o verdadeiro sacerdote e o amava pela sua brandura, humildade
e humanidade. Os compromissos não tinham fim: era uma missa aqui, um casamento
acolá, batizados e outras obrigações sacerdotais. Padre Amaro não parava.
Estava sempre presente para distribuir uma palavra, um gesto consolador, à sua
gente sofredora. Bastante contar que, além de todas as ocupações e correrias,
ainda se dedicava a alfabetização de pessoas adultas.
Dia
desses, um domingo, a sua agenda estava, como sempre, lotada. Além das três
missas celebradas, programou uma visita a uma ex-paroquiana que não mais
residia na sua freguesia. Acabada a última missa, tomou o carro e seguiu para
Olinda, cidade onde passara a residir à devota senhora que solicitava suas
atenções psicoreligiosas (portadora de câncer terminal).
Vinha
o sacerdote dirigindo normalmente quando foi parado por uma blitz da Polícia Rodoviária. Não
costumava envergar batina, tinha apenas um crucifixo na lapela que indicava ser
ele um religioso, um homem de Deus. Padre Amaro era do tipo nordestino,
franzino e de tez amarelada, certamente devido à fome ancestral e à verminose,
companheiras constantes de seus anos de infância. Não foi reconhecido pela
autoridade como o mui querido e popular Padre Amaro. Apesar das suas alegações
de ser um sacerdote, não teve jeito:
— Lei é Lei, a Lei é para todos, disparou o
garboso defensor da ordem e dos… Códigos.
O
Padre teve que soprar no bafômetro. Não deu outra. Teor alcoólico, presente.
Preso em flagrante delito (o nosso popular “teje preso”), foi para a delegacia.
Não importa se o vinho era vinho de missa. O pobre do padre Amaro foi autuado
em flagrante. Foi o Crime do Padre Amaro, servidor da Arquidiocese de Olinda e
Recife. É isso aí… Dura lex, sede lex. Principalmente no Nordeste.
Moral da História: História repete-se
sempre, pelo menos duas vezes - disse Hegel. Karl Marx acrescentou … a primeira
vez como tragédia, a segunda como farsa... Será?
Desculpe Qualquer Coisa (Crônicas de um Médico Judeu
Pernambucano) – Ed. Livro Rápido Olinda-PE. 2010.
(*) Professor Titular da Pediatria da Universidade de Pernambuco.
Psicoterapeuta. Membro da Sobrames/PE, da União Brasileira de Escritores (UBE)
e da Academia Brasileira de Escritores Médicos (ABRAMES).
Nenhum comentário:
Postar um comentário