terça-feira, 25 de outubro de 2016

AINDA BEM QUE SOU CRIANÇA


Meraldo Zisman (*)
Médico-Psicoterapeuta
— Quer dizer então que com essa tal de delação premiada eu vou me tornar um amigo da onça somente quando for engolido por ela? Agora estou entendendo…
Há palavras que pegam, outras não. As tais de corrupção e delação premiada viraram cantilenas na vida nacional.
Foi um dia desses que Dona Zequinha, professora de meio salário mínimo, embatucou-se toda na sala de aula. Do meio dos alunos veio a pergunta do Juquinha: verminótico, buxudo e peralta. Não obstante a miséria ancestral, ele não havia perdido a alegria de viver. Criança tem dessas coisas de resistência.
— Professora — perguntou ele — explica pra “nois” o que é essa tal de delação premiada.
A professora engoliu seco e, espremendo toda a sua parca capacidade didática, foi tentando a explicação:
— Todas as coisas deste mundo fazem parte uma das outras.
As crianças se entreolharam, sem entender muito bem aquela explicação.
Vendo o seu emprego fugir, pois o pai do Juquinha era figura importante na pequena cidade e as próximas eleições municipais avizinhavam-se — o dito cujo era cabo-eleitoral — a sua carreira de mestre-escola corria grave risco. Além da reeleição do prefeito corria o boato que o futuro candidatado a reeleição estava sendo acusado de corrupção na verba da merenda escolar.
Já agoniada, a moça tentou outra explicação:
— A tendência de todas as coisas deste mundo, sejam os bichos, as plantas, as pedras, são todas coisas da natureza. Em resumo, corrupção e delação premiada é como a amarração de tudo criado por Deus. Termina-se misturando tudo. As coisas da terra, os bichos, as plantas, o chão são tudo uma coisa só. Para Deus todos os seres são iguais – exclama a professora. Franciscanamente.
Sentindo a insegurança da mestra; Juquinha contra-atacou:
— Quer dizer então Dona Zequinha, pela sua teoria, se eu montar numa onça fica eu e ela, uma coisa só?
— Não, não é bem assim, meu filho — continuou a professora— A onça é um animal e ainda não incorporou aos seus instintos selvagens a bondade da natureza humana. (Criança não tem jeito, muito menos as bobas, e foi uma gargalhada geral).
— Quer dizer então que com essa tal de delação premiada eu vou me tornar um amigo da onça somente quando for engolido por ela? Agora estou entendendo…
— Não é isso seu bobinho — responde a professora— isto é apenas uma teoria — para explicar que todas as coisas desse mundo são todas interligadas.
Essa professora quer me enganar, matutou o nosso Juquinha.
Corrupção e delação premiada pra mim é quando um bicho mais forte come um mais fraco e depois diz: “foi sem querer”. Eu é que não vou montar em onça, eu não sou burro — concluiu. Aí o bicho me come; ainda bem que onça não serve para montar. Esta tal de tal de delação premiada está me parecendo mais uma história da carochinha para enganar gente grande e besta. Ainda bem que sou criança e ainda sabida.
(*) Professor Titular da Pediatria da Universidade de Pernambuco. Psicoterapeuta. Membro da Sobrames/PE, da União Brasileira de Escritores (UBE) e da Academia Brasileira de Escritores Médicos (ABRAMES).

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