Reportagem do El Pais, de
17/04/2017.
Causa um certo desconforto observar como o império
Odebrecht usou Lula com sua auréola de ex-presidente mítico para convertê-lo em
um logotipo de suas obras
Se Miguel de Cervantes chama o Quixote,
personagem central de sua obra, de "o
cavaleiro da triste figura",
na novela das confissões de Emílio e Marcelo, pai e filho do império da
Odebrecht, Lula aparece como marionete e fetiche daquele império hoje em
ruínas. Como Cervantes criou o personagem Don Quixote de la Mancha, os
Odebrecht apresentam Lula como uma figura inventada por eles. Emílio, o pai,
afirma que foi ele que, não só conseguiu a primeira vitória do ex-sindicalista
em 2002, a custa de milhões, como também transformou aquele que Leonel Brizola
– dirigente histórico da esquerda brasileira – chamava de "sapo barbudo",
em um presidente elegante, com gravata, reformista, a quem ajudou a escrever a
famosa "Carta ao Povo Brasileiro".
Certo ou fanfarronada?
Emílio se vangloria de que Lula "não era de esquerda".
Diz que "não era dos que gostavam de tirar dos ricos
para dar aos pobres". Que
também ele gostava de bancar o rico. Segundo suas confissões, Emílio conhecia
Lula desde os anos 70, quando era sindicalista e então já dera uma mão ao
empresário para amansar uma greve. Desde então, os Odebrecht se vangloriam de
ter sido os ventríloquos de Lula, que atuaria em todos os momentos de conflito
da empresa para resolver seus problemas e conseguir a aprovação de leis que
lhes favoreceriam. "Fui até ele e lhe disse: 'você
precisa tomar uma decisão'".
Era Emílio quem decidia, segundo a versão que contou aos promotores da Lava
Jato.
Os grandes empresários conheceram em
seguida os pontos fracos de Lula, o nordestino pobre e sem estudos, com um
certo deslumbramento pelo mundo do luxo e da boa vida, e saciaram suas
fantasias. Nunca o deixaram viajar em um avião de carreira, afirmam. Talvez
Lula tenha razão quando jura que nunca pediu um real aos empresários. Não era
necessário. Eles mesmos se antecipavam a seus gostos e desejos e aos de sua
falecida mulher, Marisa Letícia. Antecipavam-se para ajudar toda a sua família:
a um de seus filhos, empresário novato do futebol americano, a seu irmão Frei
Chico, a seu sobrinho Taiguara e até a seu fiel diretor do Instituto Lula,
Paulo Okamoto.
Os Odebrecht afirmam que o usaram como
presidente e depois o transformaram no lobista e fetiche do grupo dentro e fora
do Brasil. Sustentam que foram eles que organizaram e custearam com centenas de
milhões a sucessora Dilma, cuja campanha, diz Marcelo, foi ele quem "inventou", depois de
saber antes de qualquer outro que ela seria a indicada por Lula. Queriam um
sucessor ao qual Lula pudesse manejar para que eles continuassem mandando no
país. Dilma, porém, se mostrou indócil, uma espécie de cavalo difícil de
dominar, mas Lula lhes daria uma mão para domá-la e se manterem fortes com ela
na presidência.
Causa um certo desconforto observar como
o império Odebrecht usou Lula com sua auréola de ex-presidente mítico para
convertê-lo em um logotipo de suas obras. Dá melancolia conhecer hoje a farsa
das conferências que o grupo organizava para Lula pelo mundo para que lhes
conseguisse obras e financiamento fáceis. Adulavam-no dizendo-lhe que pagariam
suas palestras a preço de ouro: 200.000 dólares (620.000 reais), "como o
ex-presidente americano Bill Clinton". O que Lula dizia em seus
pronunciamentos era o de menos. O importante era que suas conferências levavam
a marca da Odebrecht. Hoje ninguém mais chama Lula para falar nem lhe pagam por
isso.
A Odebrecht também contou aos promotores
que lhe concedeu, sob a designação de "o amigo", uma conta secreta da qual podia
sacar dinheiro vivo, que era entregue em mochilas. Dizem que era uma conta de
30 milhões de dólares (93 milhões de reais). Se for comparada, porém, com os
cerca de três bilhões (9,3 bilhões de reais) que a Odebrecht distribuiu entre
os políticos de todos os partidos, aquela conta de Lula se parece mais com os
cofrinhos que os pais vão enchendo de moedas para seus filhinhos. Em vista de
tudo isso, ante a instrumentalização que a Odebrecht vem fazendo de Lula há quase
50 anos, fazendo dele também "o cavaleiro da triste
figura", quase se chega a sentir compaixão
de quem pretendia ser só inferior a Jesus Cristo. Dá vontade de exclamar:
"Pobre Lula, quixote, em que te transformaram!".
O ex-presidente, que continua se vendo
como "a alma mais limpa do Brasil", segue sendo, como também o descreveu Emílio,
"um animal político".
Há quem garanta que é um animal com sete cabeças. Acabará se apequenando depois
das confissões dos empresários que um dia o endeusaram e manipularam e hoje o
abandonaram à sua sorte, ou preferirá mostrar também os dentes confessando os
pecados dos outros? Porque poucos como Lula devem ser depositários dos segredos
e debilidades da emaranhada e sombria selva política brasileira. Atenção!
Fonte: El Pais, de 17/04/2017.
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