Meraldo Zisman (*)
Médico-Psicoterapeuta
Uma
gestante mal alimentada, mal cuidada, vivendo em condições ambientais e
psicossociais precárias e de sequência intergeracional miserável reverte-se na
pior violência contra aqueles que são gestados e continuam brotados e frutos de
tais ambientes.
George Orwell, pseudônimo de Eric Blair (1903-1950),
diz: “Jornalismo é publicar o que alguém quer que se
publique, todo o resto é publicidade”; sua obra é marcada por uma inteligência perspicaz e bem-humorada, uma
consciência profunda das injustiças sociais, uma intensa oposição ao
totalitarismo e uma paixão pela clareza da escrita.
Para recordá-lo cito uma de suas obras: A Revolução dos
Bichos. Orwell é considerado um dos
melhores cronistas da cultura inglesa do século passado.
Ninguém de bom senso permanece indiferente à notícia
de que uma bala perdida encontrou seu caminho atravessando o ventre de uma
gestante, alojando-se no feto, prestes a nascer.
Não existe uma translação adequada para essa
ocorrência calamitosa, para não dizer insólita, ao menos para mim. O povo
brasileiro elenca nas estatísticas a segurança como sua principal prioridade, à
frente da fome, do desemprego e das crises, secundarizando até a saúde. A
segurança permanece sendo estatisticamente a principal desgraça, ganhando de
longe de todas as outras. Voltando à morte do bebê dentro da mãe escrevo: é
compreensivo que seja tal crime noticiado pelas mídias e mais, ser baleado
dentro do útero materno não pode deixar de ser manchete.
Indago: será essa violência a única que merece
tamanho destaque? Fala-se muito contra a censura e que a imprensa é livre. Não
tenho tanta certeza.
Pior que a censura descarada é a tentativa de
rivalizar algum acontecimento estocástico para camuflar a reportagem das
verdadeiras causas das mazelas.
Tomo como exemplo o apagamento do nome do Josué
Apolônio de Castro (1908–1973). Relembro que esse brasileiro foi um influente
médico, nutrólogo, professor, geógrafo, cientista social, político, escritor e
ativista brasileiro que dedicou sua vida ao combate à fome.
Destacou-se no cenário brasileiro e internacional
não só por seus trabalhos sobre o problema da fome no mundo, mas também por sua
atuação no plano político, em vários organismos internacionais. O seu livro Geografia da Fome talvez seja um dos mais importantes livros escritos em português, tendo
sido traduzido para os mais diferentes idiomas. Seus estudos, conhecidos em
todo o mundo, lhe valeram o Prêmio Internacional da Paz e indicações para o
Prêmio Nobel da Paz. Cito esse autor apenas para permanecer na minha praia, a
da Medicina.
A fome ancestral, para o Josué, é fruto da ação
humana, de suas escolhas e da condição econômica do país. “Fome, pobreza,
falta de saneamento básico, atraso, etc. são uma mesma coisa”, afirmava ele e concordo, eu. Acredito ainda que certos programas não
passam de falsos auxílios: o programa de atenção à gestante teve como
consequências o aumento da gravidez entre adolescentes. Não é o único causal,
mais que contribui, contribuiu.
Muito se falou sobre a epidemia do Zica e a
microcefalia, agora não mais mencionada. Deixou de ser novidade?
Uma gestante mal alimentada, mal-cuidada, vivendo em
condições ambientais e psicossociais precárias e de sequência intergeracional
miserável reverte-se na pior violência contra aqueles que são gestados e
continuam brotados e frutos de tais ambientes.
Tais fatos mereceriam maior destaque midiático ou –
pelo menos – serem mais lembrados. Se as consequências dessas distorções não
são noticiadas, elas serão esquecidas, encobertas ou – pior – nunca sabidas.
Quer saber de uma coisa? Estou achando que Orwell
tinha razão…
O que vale mesmo é propaganda e a opinião dos donos
das mídias. E não venham me dizer que as mídias sociais são livres quando mais
de 80% do que noticiam carrega consigo as opiniões pessoais dos repórteres que
as originam.
(*) Professor Titular da Pediatria da Universidade de Pernambuco.
Psicoterapeuta. Membro da Sobrames/PE, da União Brasileira de Escritores (UBE)
e da Academia Brasileira de Escritores Médicos (ABRAMES). Consultante Honorário da
Universidade de Oxford (Grã-Bretanha).
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