sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Crônica: “É mas não é, sendo” ... e outro causo

"É mas não é, sendo"

Dez anos atrás, ainda pleno de saúde, Carneiro, o cabra mais brabo que conheci, dizia que "mazela ninhuma no mundo" o levaria ao médico. De fato, nunca fora a um até àquela idade - 75 anos. Nunca uma "piula".

Mas a máquina foi sendo comida pela voraz lagarta do tempo, quisesse ou não. Doca arreia de vez numa rede. Que de surpresas teve! Mazelas de A a Z, como diz o amigo Lavor: da azia na boca do estambo ao zóio remelando.

Um ano de idas e vindas ao IJF. A mulher já não aguenta. É quando compadre Honório, por quem Carneiro tem o mais profundo respeito, decide custear-lhe plano de saúde privado. Detalhe: Carneiro não podia saber.

- Negócio de médico, plano, remédio, é friagem - defendia.

E ele tem até uma melhora. Recuperação coincide com a data do aniversário. Casa lotada de amigos. Lá está o compadre Honório, "pagão" do plano de saúde de Carneiro, que saúda os presentes.

- Graças a Deus tô bom. Prova que não preciso de médico!

- Doca, Doca! - pondera Neinha, mulher dele, coçando a língua.

- Exame é pra quem não tem o que fazer! Plano é frescura, pra quem usa e pra quem paga!

- Pois fique sabendo, bicho besta, que tu ainda tá com vivo porque tem um plano! E quem paga é cumpade Honório!

- Cumpade Honório?

- Sim! Agora diz: quem usa e paga plano é balde, é?

- É, mas num é, sendo...

Casamento séptico

Procópio Straus é enfático, em "Sovaco de miss", página 455: "O excelente cobrador é, via de regra, um ótimo devedor". Para ele, o cobrador renitente é único na sabença das próprias "imperfeições devedorícias".

Chico Pompilho é um belo exemplo: por um centavo será capaz de gastar um milhão. Seus devedores pagam de tanta aporrinhação. Vai ao centro duma coivara pegar o que é dele.

Aprendeu a cobrar nos tempos em que era próspero comerciante de colher de pau no mercado São Sebastião. Mas quebrou e passou a biscateiro. É "disgatador esporádico de fossa séptica".

Pois muito bem. Na tarde-noite do casamento de Iuná, filha do bodegueiro Clóvis Cachorro, a súbita e desgraçada surpresa: privadas regurgitando os bocados humanos lá postos. Baldes de água e descargas outras debalde.

A saída: chamar o vizinho Chico Pompilho pro "disgotamento" da fossa da casa da noiva. Valor da empreitada: 50 reais - e mais os litros de cana e de querosene. Dia da paga: o próprio, ao final dos serviços. Enfim, trabalho feito e Chico quer a grana.

Na casa de Clóvis Cachorro já ninguém lhe atende. Estão todos na igreja. Daqui a pouco, de volta pra recepção. Mas Chico, até porque bebera a cana toda pra mergulhar naquilo lá, não aceita desculpas. E vai à igreja cobrar.

- Seu Clóvis, tudo limpo pro cagamento da Iuná! E os cinquentinha?

Fonte: O POVO, de 6/03/2020. Coluna “Crônicas”, de Tarcísio Matos. p.2.

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