Por Humberto Cunha Filho (*)
A morte de Paulo Bonavides, dentre as inumeráveis
perdas, deixou vaga a Cadeira nº 17 da Academia Cearense de Letras (ACL),
para o preenchimento da qual foram abertas inscrições, em processo que animou a
esposa do falecido intelectual a lançar uma “carta aberta” aos membros da mencionada
instituição, na qual pugna para “que o escolhido seja alguém que, por sua
produção acadêmica, sua trajetória intelectual, honre a cadeira”.
O apelo público de Dona Yeda Bonavides, para que as coisas ocorram
da forma como imaginamos ser a rotina, dá a entender um receio de que possa
existir alguma anomalia no processo de escolha dos imortais
cearenses. Por outro lado, lança um peso montanhesco sobre os eleitores e a pessoa
que vier a ser eleita, dado o status de intelectual fora do comum representado
por Paulo Bonavides.
Sem conhecer os meandros do funcionamento, o episódio da sucessão
de Bonavides, anima a investigação, em abstrato, sobre o que é uma academia
e a importância de participar de uma delas. Antecipa-se que é um tipo de instituição
historicamente envolvida em polêmicas e com variações conceituais entre o uso
da palavra na antiguidade e na modernidade, o que inclui as ideias de apropriação
e gentrificação cultural. Originalmente, a expressão remete à escola situada nos
jardins de Academos - um herói mítico -, onde Platão, um ex-escravo educado
pelo dialético método maiêutico de Sócrates, ministrava aulas enquanto caminhava
sob as oliveiras. Por ter sido considerada pagã, a academia platônica
foi extinta por Justiniano em 529 da era de Cristo.
O ressurgimento na modernidade, conservou apenas o nome,
se for observada a história da instituição até hoje supostamente paradigmática para
as suas congêneres, a Academia Francesa (AF), criada em 1635 por iniciativa
do Cardeal de Richelieu, título religioso de Armand Jean du Plessis, o Primeiro
Ministro de Luís XIII. Detalhe importante: o criador da AF é considerado o arquiteto
do absolutismo, regime político que foi levado a efeito em sua máxima potência
pelo rei sucessor, Luís XIV, o imputado autor da reveladora frase “o Estado sou
eu”.
Desta feita, a instituição foi o abrigo dos “titulados,
mitrados e letrados”, que nos seus primeiros 100 anos serviu de instrumento
ao monarca, sobremodo em algo estratégico para a unidade da França, a língua,
o que pode ser visto no artigo inaugural do seu estatuto, até hoje vigente: “A principal missão da
Academia será a de trabalhar com todo o cuidado e toda a diligência possíveis
para dar regras precisas à nossa língua e garantir a sua pureza, eloquência
e torná-la apta a lidar com as artes e as ciências”.
O caráter elitista era tão proeminente, que dentre os períodos
de submersão existencial esteve o da Revolução Francesa, por a Academia representar
o clero e a nobreza, justamente as fatias da sociedade contra as quais foi feita
a revolta do Terceiro Estado. Todavia, a despeito das ideias de excludência
e elitismo presentes em qualquer que seja o regime político no qual a academia
moderna funcione, decorrentes do simples fato da limitação de cadeiras, tal
sentimento de apartação é diminuído pelo objetivo adotado, quando esse é nobre
e de interesse social.
No caso da Academia Brasileira de Letras (ABL), que tem natureza de
associação privada, fundada em 20 de julho de 1897, por iniciativa,
dentre outros, de um simples mas genial servidor público e literato, Machado
de Assis, o intuito de existência da instituição assemelha-se ao da francesa,
precisamente, “a cultura da língua e da literatura nacional”.
Antecedendo à brasileira, a Academia Cearense de Letras, também associação
privada, foi fundada em 15 de agosto de 1894; todavia, certamente dada a
limitação territorial da atuação, seu objetivo foi traçado
de forma mais difusa e, por conseguinte, menos precisa:
“a preservação, o cultivo e o desenvolvimento da literatura e da produção
científica, filosófica e cultural reconhecida como de qualidade superior no âmbito
da sociedade cearense”.
Além de ramificado, o objetivo da ACL, ao receber o complemento de
que a atividade precisa ser “reconhecida como de qualidade superior”, abre o flanco
para dúvidas e ambições, pois a pessoa escolhida passa a compor uma
elite cuja obra recebe um selo de que supostamente tem maior perfeição
e valor que as demais, o que é extremamente problemático,
dado o caráter de incomparabilidade das criações intelectuais, algo reconhecido
desde gigantes da literatura, como Victor Hugo, chegando até mesmo aos redatores
das leis de licitações.
Mas isso, em sociedades que valorizam as aparências, ao invés de ser
um obstáculo, é um estímulo: aqueles - mesmo os destituídos de pendores literários
- que querem e têm meios de acrescentar ao seu patrimônio esse “capital simbólico”
(expressão consagrada na obra de Pierre Bourdieu), fazem questão de ingressar na
academia, desde que entre seus confrades existam nomes incontestáveis, que
servem exatamente para qualificar o ambiente no qual todos que estejam
nele usufruirão do prestígio gerado por simples proximidade. Superar a falta de
produção intelectual, para os intelectuais por agregação, passa a ser o menor dos
problemas.
Certamente as academias existentes no Brasil, em seus processos de
renovação, já enfrentaram situações que lembram as relatadas por Hélène Carrère
d’Encausesse, ao historiar “incidentes eleitorais” da francesa, como o que, diante
da morte de Corneille, a instituição correu o risco de preterir o irmão do dramaturgo,
Thomas, porque o Duque do Maine, então com 15 anos, “quase iletrado”,
adentrou na fantasia de ser imortal, tendo providenciado a prova de sua precocidade
literária, com base na qual fez publicar suas “obras selecionadas” de quando tinha
7 anos de idade.
O fato é que esse tipo de problema é insolúvel para a concepção
fechada de academia que se conserva até hoje, para a qual a resposta tem sido
de algum modo tola, que é a de fazer pulular novas agremiações similares, com o
mesmo modelo aromatizado com as ideias de distinção e genialidade. E alternativas
há, inclusive no universo privado, sendo a mais evidente delas a da Academia
de Artes e Ciência Cinematográficas (de Hollywood), a do Oscar, pujante em suas
realizações, transfronteiriça, baseada na criação intelectual
permanente, que abriga milhares de membros.
As possibilidades apresentadas sugerem que o modelo acadêmico moderno
precisa ser repensado, uma demanda que certamente já se transformou em lugar-comum
e, segundo a observação de Horace Engdahl (o secretário perpétuo da Academia Sueca,
de 1999 a 2009), com chances ínfimas de sucesso, uma vez que para ele, o conservadorismo
dessas instituições é tão acentuado ao ponto de inspirar a observação metafórica
de que “as academias são os crocodilos do mundo social”.
(*) Humberto Cunha Filho é professor de Direitos Culturais nos
programas de graduação, mestrado e doutorado da Universidade de Fortaleza (UNIFOR).
Autor, dentre outros, do livro “Teoria dos Direitos Culturais: fundamentos e finalidades”.
Fonte: Anunciado In: O Povo,
de 18/1/2021. Vida & Arte. p.3.
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