Em “Reminiscências da
Campanha do Paraguai (1865-1870)”, livro publicado no Rio de Janeiro, em 1980,
pela Biblioteca do Exército, de autoria do general Dionísio Cerqueira, há um
dos subtítulos do capítulo XXII bastante intrigante: “Cirurgião Perigoso”.
Segundo ORLANDO
(2016), em uma narrativa de Cerqueira (1980), abaixo transcrita por José Maria
Orlando, In: “Vencendo a morte”, obra publicada em 2016, ficou patente “não
apenas a absoluta ausência dos princípios da assepsia cirúrgica - o que por si
só não adicionaria nenhum demérito ao corpo médico militar do exército brasileiro
à época, pois era isso o que se verificava em qualquer outro país, diante da
falta de conhecimentos científicos sobre o papel dos germes na etiologia das
infecções –, mas faz menção a uma atitude totalmente condenável do ponto de
vista humanitário.”
Veja o relato a
seguir, reproduzido de ORLANDO (2016, p.339-400):
(...) Nos hospitais havia, também,
perigos e alguns bastantes sérios (...) nossos médicos eram hábeis e caridosos,
mas havia um ou outro que causava arrepios aos nossos pobres camaradas. Servia
no “Saladero”, nosso hospital em Corrientes, um médico contratado, que tinha
horror a sua enfermaria, por casos de moléstias contagiosas que lá apareceram.
Todos os dias chegava à porta, pedia ao enfermeiro notícias dos doentes e
receitava verbalmente: para os do lado direito –
purgantes; para os do lado esquerdo –
vomitórios. No dia seguinte os do lado direito tomavam vomitório e os do
esquerdo purgante; alternava sempre. Outro, não pensem ser fantasia; não, não
é, estava uma vez de dia – e foi
chamado para socorrer a um ferido, recolhido do hospital. Acercou-se do infeliz
que tinha o ventre aberto e os intestinos de fora, palpitantes. Deixou o
cigarro, cheio de sarro, na barra ensangüentada; e, sem lavar as mãos, tentou
debalde reduzir a hérnia, rebelde e obstinada. Desanimado, abriu uma caixa de
amputação, tirou uma faca fina, longa, meio enferrujada; agarrou com a mão
esquerda o intestino mais saliente; com a faca ameaçadora na direita olhou para
o cabo-enfermeiro, que fitava, espantado, aquela cena e perguntou-lhe: – Corto?
O cabo respondeu: –
Não, senhor doutor.
– Então arranja-te, disse o cirurgião, e retirou-se. O enfermeiro, mais
prático do que ele, introduziu os intestinos e coseu o ventre do infeliz.
Parece fábula, mas é a verdade, em
toda a sua nudez. Esse cirurgião não era, felizmente, doutor em Medicina.
Reprovado no segundo ou terceiro ano, não me lembro bem, fez-se embarcadiço;
depois assentou praça. Teve baixa antes da guerra e voltou à faculdade,
alistando-se entre aquela briosa e benemérita plêiade de estudantes, que tanto
enobreceram a Medicina pátria (...).
O relato acima virou
uma página do passado, no tocante ao controle dos agentes infecciosos e da
prática anestésica nos procedimentos cirúrgicos dos tempos atuais, porém a
incompetência médica e a desumanização do profissional ainda persistem em
situações excepcionais, como o fato análogo a seguir reportado.
Conta-se que, em um
hospital de pronto socorro de uma capital nordestina, por volta dos anos 1980,
algo parecido teria lá acontecido.
Em decorrência de uma
agressão física, com múltiplas lesões por arma branca, um paciente foi admitido
no hospital de urgência e submetido a uma laparotomia exploradora, para
correção do sangramento e suturas dos órgãos lesionados.
Durante o procedimento
cirúrgico, que prosseguia por bastante tempo, havia dificuldade de se conter os
sangramentos, o que demandava a reposição de sangue, com várias bolsas já
utilizadas no intuito evitar o choque hipovolêmico e a subsequente morte do
paciente.
Subitamente, o
cirurgião-chefe, que não conseguia debelar o sangramento, surpreendeu a todos
que se encontravam nessa sala do centro cirúrgico, ao interromper a cirurgia,
retirando as suas luvas e proclamando sua conduta definitiva:
–
Dou por morto! Esse não tem mais jeito.
E em seguida, saiu da
sala operatória.
Por sorte, os dois
médicos-residentes, que atuavam como auxiliares da operação, acionaram a
solicitação da presença de um outro cirurgião-geral do plantão, e juntos
continuaram a intervenção cirúrgica, de forma exitosa, fazendo as hemostasias
necessárias, eliminando a perda sanguínea e assim salvaram a vida do paciente.
O causo ora descrito
resultou em punição do dito cirurgião-chefe, por incompetência técnica e por
omissão de socorro, redundando em seu desligamento do hospital.
Referências:
CERQUEIRA,
Dionísio. Reminiscências da Campanha do
Paraguai (1865-1870). Rio de Janeiro. Biblioteca do Exército, 1980.
ORLANDO, José
Maria. Vencendo a morte: como as
guerras fizeram a medicina evoluir. 2.ed. São Paulo. Matrix, 2016. 600p. (p.
338-340).
Marcelo Gurgel Carlos da Silva
Ex-Presidente da Sobrames-Ceará
* Publicado In: SILVA, M. G. C. da (Org.). Ombro, arma! Médicos
contam causos da caserna. Fortaleza: Expressão, 2018. 112p. p.57-61.
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