domingo, 4 de abril de 2021

DA GUERRA DO PARAGUAI AOS TEMPOS HODIERNOS

Em “Reminiscências da Campanha do Paraguai (1865-1870)”, livro publicado no Rio de Janeiro, em 1980, pela Biblioteca do Exército, de autoria do general Dionísio Cerqueira, há um dos subtítulos do capítulo XXII bastante intrigante: “Cirurgião Perigoso”.

Segundo ORLANDO (2016), em uma narrativa de Cerqueira (1980), abaixo transcrita por José Maria Orlando, In: “Vencendo a morte”, obra publicada em 2016, ficou patente “não apenas a absoluta ausência dos princípios da assepsia cirúrgica - o que por si só não adicionaria nenhum demérito ao corpo médico militar do exército brasileiro à época, pois era isso o que se verificava em qualquer outro país, diante da falta de conhecimentos científicos sobre o papel dos germes na etiologia das infecções –, mas faz menção a uma atitude totalmente condenável do ponto de vista humanitário.”

Veja o relato a seguir, reproduzido de ORLANDO (2016, p.339-400):

(...) Nos hospitais havia, também, perigos e alguns bastantes sérios (...) nossos médicos eram hábeis e caridosos, mas havia um ou outro que causava arrepios aos nossos pobres camaradas. Servia no “Saladero”, nosso hospital em Corrientes, um médico contratado, que tinha horror a sua enfermaria, por casos de moléstias contagiosas que lá apareceram. Todos os dias chegava à porta, pedia ao enfermeiro notícias dos doentes e receitava verbalmente: para os do lado direito purgantes; para os do lado esquerdo vomitórios. No dia seguinte os do lado direito tomavam vomitório e os do esquerdo purgante; alternava sempre. Outro, não pensem ser fantasia; não, não é, estava uma vez de dia e foi chamado para socorrer a um ferido, recolhido do hospital. Acercou-se do infeliz que tinha o ventre aberto e os intestinos de fora, palpitantes. Deixou o cigarro, cheio de sarro, na barra ensangüentada; e, sem lavar as mãos, tentou debalde reduzir a hérnia, rebelde e obstinada. Desanimado, abriu uma caixa de amputação, tirou uma faca fina, longa, meio enferrujada; agarrou com a mão esquerda o intestino mais saliente; com a faca ameaçadora na direita olhou para o cabo-enfermeiro, que fitava, espantado, aquela cena e perguntou-lhe: Corto?

O cabo respondeu: Não, senhor doutor.

Então arranja-te, disse o cirurgião, e retirou-se. O enfermeiro, mais prático do que ele, introduziu os intestinos e coseu o ventre do infeliz.

Parece fábula, mas é a verdade, em toda a sua nudez. Esse cirurgião não era, felizmente, doutor em Medicina. Reprovado no segundo ou terceiro ano, não me lembro bem, fez-se embarcadiço; depois assentou praça. Teve baixa antes da guerra e voltou à faculdade, alistando-se entre aquela briosa e benemérita plêiade de estudantes, que tanto enobreceram a Medicina pátria (...).

O relato acima virou uma página do passado, no tocante ao controle dos agentes infecciosos e da prática anestésica nos procedimentos cirúrgicos dos tempos atuais, porém a incompetência médica e a desumanização do profissional ainda persistem em situações excepcionais, como o fato análogo a seguir reportado.

Conta-se que, em um hospital de pronto socorro de uma capital nordestina, por volta dos anos 1980, algo parecido teria lá acontecido.

Em decorrência de uma agressão física, com múltiplas lesões por arma branca, um paciente foi admitido no hospital de urgência e submetido a uma laparotomia exploradora, para correção do sangramento e suturas dos órgãos lesionados.

Durante o procedimento cirúrgico, que prosseguia por bastante tempo, havia dificuldade de se conter os sangramentos, o que demandava a reposição de sangue, com várias bolsas já utilizadas no intuito evitar o choque hipovolêmico e a subsequente morte do paciente.

Subitamente, o cirurgião-chefe, que não conseguia debelar o sangramento, surpreendeu a todos que se encontravam nessa sala do centro cirúrgico, ao interromper a cirurgia, retirando as suas luvas e proclamando sua conduta definitiva:

– Dou por morto! Esse não tem mais jeito.

E em seguida, saiu da sala operatória.

Por sorte, os dois médicos-residentes, que atuavam como auxiliares da operação, acionaram a solicitação da presença de um outro cirurgião-geral do plantão, e juntos continuaram a intervenção cirúrgica, de forma exitosa, fazendo as hemostasias necessárias, eliminando a perda sanguínea e assim salvaram a vida do paciente.

O causo ora descrito resultou em punição do dito cirurgião-chefe, por incompetência técnica e por omissão de socorro, redundando em seu desligamento do hospital.

Referências:

CERQUEIRA, Dionísio. Reminiscências da Campanha do Paraguai (1865-1870). Rio de Janeiro. Biblioteca do Exército, 1980.

ORLANDO, José Maria. Vencendo a morte: como as guerras fizeram a medicina evoluir. 2.ed. São Paulo. Matrix, 2016. 600p. (p. 338-340).

Marcelo Gurgel Carlos da Silva

Ex-Presidente da Sobrames-Ceará

* Publicado In: SILVA, M. G. C. da (Org.). Ombro, arma! Médicos contam causos da caserna. Fortaleza: Expressão, 2018. 112p. p.57-61.

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