segunda-feira, 19 de abril de 2021

FLORES DE GILMAR

Por Ana Miranda (*)

Abro as janelas, saio à varanda. As flores estão por todo lado. Basta pôr os olhos na paisagem. Com as chuvas, as catingueiras se cobriram de pequenas inflorescências amarelas em cachos; plantas silvestres rasteiras rebentam milagrosamente entre uma noite e um dia, o chão amanhece orvalhado de flores roxas, douradas, azuis, róseas, vermelhas, algumas quase transparentes de tão delicadas. Brotam, espontâneas. Quem as plantou? Talvez os anjos. Talvez as bordadeiras do sertão. Brotam da areia, como poemas políticos brotam da indignação. Brotam da natureza mais meiga e têm nomes singelos que o povo dá: chanana, salsa-da-praia, breu, pega-pinto...

Estas flores silvestres que, depois das chuvas, alcatifam os litorais e sertões nasceram para celebrar Gilmar de Carvalho, nosso romancista, estudioso, mestre que colhe o que brota da terra cearense, as mais sinceras flores da nossa música, das nossas imagens, das nossas histórias, danças, mitologias. Gilmar é um tesouro cultural que nos pertence, mestre dos mestres da cultura, autor do maior romance épico do Nordeste, o Parabélum. Cada uma dessas florinhas espalhadas pelo chão faz uma homenagem a ele e a todos os que sofrem e sofreram nos hospitais, nas filas por um leito, numa cama em casa, a todos os que se foram, neste tempo de pandemia, e aos que os amavam.

Gilmar recolhe o que há de belo e fundamental na alma cearense e guarda no mais seguro de todos os cofres: os livros. Na companhia do fotógrafo Francisco de Sousa, Gilmar vai ao fundo do Ceará. Visitou todos os nossos municípios, percorrendo estradas vicinais, carroçáveis, piçarras, adentrou os mais escondidos recantos, com os olhos abertos para os artistas do povo e suas tradições. Viaja no próprio carro, paga a sua comida, gasolina, dormida, os pneus e o desgaste, para ser livre. Enfrenta, como ele diz, "o pedregulho, a areia, a extrema beleza e a profunda miséria". Com ouvidos atentos, olhar demorado, descobre os mistérios da criação popular no vento que sopra, nos gestos de um lavrador, nos mandacarus em flor, nas linhas do horizonte, nas secas e inundações, nos raios de luar, no canto das patativas. Cada uma dessas pequenas flores silvestres é uma prece para nosso professor Gilmar. E todo o seu reino reza por ele.

Este é o seu reino, o seu povo: o povo do cordel, da xilogravura, os vaqueiros, as rendeiras, labirinteiras, bordadeiras, dançarinos de maracatus, as bandas cabaçais, os poetas, indígenas, pais e mães de santo, as cozinheiras, doceiras, os rabequeiros, cantadores, mamulengueiros, repentistas, sanfoneiros, tocadores de pífaro, trovadores, dançarinos, profetas...

Para Gilmar nasceram todas estas florinhas e ressoam todas as cordas de rabecas, todos os repentes, aboios, todas as peças de teatro, todos os mamulengos, as emboladas, cantorias ressoam nos sertões, loas e saraus, toréns e trovas, Ana da Rabeca tira para ele um baião, para ele canta sua madrinha Dadá os benditos "Maria Valei-Nos", trechos da "Nau Catarineta", para ele entoam salmos as beatas do padim Cícero, a comemorar sua existência generosa e íntegra. Louvado seja!

(*) Escritora.

Fonte: Publicado In: O Povo, de 10/04/21. Vida & Arte, p.2.

Nota do Blog: Com essa sensível crônica a prestigiada escritora Ana Miranda rendia a sua homenagem ao intelectual Gilmar de Carvalho que se encontrava internado por Covid-19, e veio a falecer na noite de sábado (17/4/2021), o que muito lamento.

Eu conhecia o professor e jornalista Gilmar de Carvalho e frequentemente nos encontrávamos na Expressão Gráfica, editora que amiúde publica nossas obras literárias, momento em que aproveitávamos para atualizar nossas conversas.

Por sua atuação também no campo da dramaturgia, Gilmar honrou-se ao prefaciar o meu livro “Revelações de um Maquisard”, edição bilíngue em português e francês, obra contemplada com o Prêmio Eduardo Campos – Categoria Dramaturgia Inédita – do Edital do Prêmio Literário para Autor(a) Cearense, em julho de 2010.

Marcelo Gurgel Carlos da Silva

Editor do Blog


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