Por Ana Miranda
(*)
Abro
as janelas, saio à varanda. As flores estão por todo lado. Basta pôr os olhos
na paisagem. Com as chuvas, as catingueiras se cobriram de pequenas
inflorescências amarelas em cachos; plantas silvestres rasteiras rebentam
milagrosamente entre uma noite e um dia, o chão amanhece orvalhado de flores
roxas, douradas, azuis, róseas, vermelhas, algumas quase transparentes de tão
delicadas. Brotam, espontâneas. Quem as plantou? Talvez os anjos. Talvez as bordadeiras
do sertão. Brotam da areia, como poemas políticos brotam da indignação. Brotam
da natureza mais meiga e têm nomes singelos que o povo dá: chanana,
salsa-da-praia, breu, pega-pinto...
Estas
flores silvestres que, depois das chuvas, alcatifam os litorais e sertões
nasceram para celebrar Gilmar de Carvalho, nosso romancista, estudioso, mestre
que colhe o que brota da terra cearense, as mais sinceras flores da nossa
música, das nossas imagens, das nossas histórias, danças, mitologias. Gilmar é
um tesouro cultural que nos pertence, mestre dos mestres da cultura, autor do
maior romance épico do Nordeste, o Parabélum. Cada uma dessas florinhas
espalhadas pelo chão faz uma homenagem a ele e a todos os que sofrem e sofreram
nos hospitais, nas filas por um leito, numa cama em casa, a todos os que se
foram, neste tempo de pandemia, e aos que os amavam.
Gilmar
recolhe o que há de belo e fundamental na alma cearense e guarda no mais seguro
de todos os cofres: os livros. Na companhia do fotógrafo Francisco de Sousa,
Gilmar vai ao fundo do Ceará. Visitou todos os nossos municípios, percorrendo
estradas vicinais, carroçáveis, piçarras, adentrou os mais escondidos recantos,
com os olhos abertos para os artistas do povo e suas tradições. Viaja no
próprio carro, paga a sua comida, gasolina, dormida, os pneus e o desgaste,
para ser livre. Enfrenta, como ele diz, "o pedregulho, a areia, a extrema
beleza e a profunda miséria". Com ouvidos atentos, olhar demorado,
descobre os mistérios da criação popular no vento que sopra, nos gestos de um
lavrador, nos mandacarus em flor, nas linhas do horizonte, nas secas e
inundações, nos raios de luar, no canto das patativas. Cada uma dessas pequenas
flores silvestres é uma prece para nosso professor Gilmar. E todo o seu reino
reza por ele.
Este
é o seu reino, o seu povo: o povo do cordel, da xilogravura, os vaqueiros, as
rendeiras, labirinteiras, bordadeiras, dançarinos de maracatus, as bandas
cabaçais, os poetas, indígenas, pais e mães de santo, as cozinheiras, doceiras,
os rabequeiros, cantadores, mamulengueiros, repentistas, sanfoneiros, tocadores
de pífaro, trovadores, dançarinos, profetas...
Para
Gilmar nasceram todas estas florinhas e ressoam todas as cordas de rabecas,
todos os repentes, aboios, todas as peças de teatro, todos os mamulengos, as
emboladas, cantorias ressoam nos sertões, loas e saraus, toréns e trovas, Ana
da Rabeca tira para ele um baião, para ele canta sua madrinha Dadá os benditos
"Maria Valei-Nos", trechos da "Nau Catarineta", para ele
entoam salmos as beatas do padim Cícero, a comemorar sua existência generosa e
íntegra. Louvado seja!
(*) Escritora.
Fonte: Publicado In: O Povo, de 10/04/21. Vida & Arte, p.2.
Nota do Blog: Com essa sensível crônica
a prestigiada escritora Ana Miranda rendia a sua homenagem ao intelectual
Gilmar de Carvalho que se encontrava internado por Covid-19, e veio a falecer na
noite de sábado (17/4/2021), o que muito lamento.
Eu conhecia o professor e jornalista Gilmar de Carvalho e frequentemente
nos encontrávamos na Expressão Gráfica, editora que amiúde publica nossas obras
literárias, momento em que aproveitávamos para atualizar nossas conversas.
Por sua atuação também no campo da dramaturgia, Gilmar
honrou-se ao prefaciar o meu livro “Revelações de um Maquisard”, edição bilíngue em português e francês, obra contemplada
com o Prêmio
Eduardo Campos – Categoria Dramaturgia
Inédita – do Edital do Prêmio Literário para Autor(a) Cearense, em julho de
2010.
Marcelo Gurgel
Carlos da Silva
Editor do Blog
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