Por Érico Arruda (*)
A tarde daquele domingo de maio de 2020 só iniciava.
Recupera-me da Covid-19 há alguns dias. Saí da enfermaria do Hospital
São José, após intenso trabalho; entrei no repouso dos médicos, fechei a porta
do banheiro e chorei.
Escondi-me ali disfarçando a emoção que vivia, sendo
um dos mais experientes, para não transparecer desesperança ou desespero
junto aos colegas mais novos da equipe.
Na manhã seguinte, os carros de funerária faziam
fila na lateral do hospital. Fui ao necrotério e conferi nove corpos.
A "vozinha" com quem conversara e tentara acalmar, com
palavras de esperança, oxigênio e medicações, na manhã anterior, estava ali
entre outros mais novos. Não houve tempo dela despedir-se da família
e não haveria velório.
Por vários dias, vivi aquela massacrante
rotina. Visita ao necrotério; trabalho na enfermaria; recrutar e incluir
pacientes no protocolo de tratamento da OMS (Solidarity); discutir e
implementar projetos de pesquisa locais.
Os "ventos" de agosto, como que soprados
pelas medidas de distanciamento e obrigatoriedade de uso de máscaras,
foram melhorando o cenário. Voltamos às sessões científicas, debatendo os
resultados frustrantes dos estudos dos vários tratamentos especulados. De outro
ângulo, os experimentos com vacinas avançavam rapidamente. A
perspectiva delas nos fizeram acreditar que poderíamos escapar da segunda onda.
Chegam as eleições, o final do ano e suas
confraternizações, presenciamos o que não queríamos, mas antevíamos. Como se
bem além do percentual de seguidores cegos da liderança executiva que
nos desgoverna, maior contingente da população passasse a acatar suas
orientações.
Aglomerações e descaso pelo uso de máscaras. Não
bastasse, logo após a euforia pela disponibilidade das primeiras doses de
vacina, nos certificamos do "desplanejamento" para sua
aquisição e produção.
A morte foi novamente atiçada com incentivos de quem
se compraz com a necropolítica. "E daí?"; "Para que
essa ansiedade e essa angústia?"; "Chega de frescura e de
mimimi".
Profissionais de saúde e larga maioria da sociedade
continuam chorando os seus mortos. Isso é parte da mais pura
característica dos seres humanos; nos importar e sentir um pouco a dor do
outro.
Sem vacinação em larga escala, 2021 será apenas o
eco do nosso nobre e desrespeitado "mimimi".
(*) Médico infectologista. Doutor em Doenças
Infecciosas e professor da UECE.
Fonte: Publicado In: O Povo, de 15/03/2021. Opinião. p.21.
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