terça-feira, 20 de abril de 2021

NOSSO NOBRE E DESRESPEITADO

Por Érico Arruda (*)

A tarde daquele domingo de maio de 2020 só iniciava. Recupera-me da Covid-19 há alguns dias. Saí da enfermaria do Hospital São José, após intenso trabalho; entrei no repouso dos médicos, fechei a porta do banheiro e chorei.

Escondi-me ali disfarçando a emoção que vivia, sendo um dos mais experientes, para não transparecer desesperança ou desespero junto aos colegas mais novos da equipe.

Na manhã seguinte, os carros de funerária faziam fila na lateral do hospital. Fui ao necrotério e conferi nove corpos. A "vozinha" com quem conversara e tentara acalmar, com palavras de esperança, oxigênio e medicações, na manhã anterior, estava ali entre outros mais novos. Não houve tempo dela despedir-se da família e não haveria velório.

Por vários dias, vivi aquela massacrante rotina. Visita ao necrotério; trabalho na enfermaria; recrutar e incluir pacientes no protocolo de tratamento da OMS (Solidarity); discutir e implementar projetos de pesquisa locais.

Os "ventos" de agosto, como que soprados pelas medidas de distanciamento e obrigatoriedade de uso de máscaras, foram melhorando o cenário. Voltamos às sessões científicas, debatendo os resultados frustrantes dos estudos dos vários tratamentos especulados. De outro ângulo, os experimentos com vacinas avançavam rapidamente. A perspectiva delas nos fizeram acreditar que poderíamos escapar da segunda onda.

Chegam as eleições, o final do ano e suas confraternizações, presenciamos o que não queríamos, mas antevíamos. Como se bem além do percentual de seguidores cegos da liderança executiva que nos desgoverna, maior contingente da população passasse a acatar suas orientações.

Aglomerações e descaso pelo uso de máscaras. Não bastasse, logo após a euforia pela disponibilidade das primeiras doses de vacina, nos certificamos do "desplanejamento" para sua aquisição e produção.

A morte foi novamente atiçada com incentivos de quem se compraz com a necropolítica. "E daí?"; "Para que essa ansiedade e essa angústia?"; "Chega de frescura e de mimimi".

Profissionais de saúde e larga maioria da sociedade continuam chorando os seus mortos. Isso é parte da mais pura característica dos seres humanos; nos importar e sentir um pouco a dor do outro.

Sem vacinação em larga escala, 2021 será apenas o eco do nosso nobre e desrespeitado "mimimi". 

(*) Médico infectologista. Doutor em Doenças Infecciosas e professor da UECE.

Fonte: Publicado In: O Povo, de 15/03/2021. Opinião. p.21.


Nenhum comentário:

Postar um comentário