Por Juliana Diniz (*)
Não
é preciso assistir às sessões da CPI da Pandemia para
descobrir que o brasileiro tem perdido tempo discutindo o uso de alguns
medicamentos como forma de tratar a Covid-19.
Hidroxicloroquina, ivermectina,
vitamina D; há kits para todos os gostos. Não é uma discussão científica,
porque essa já foi superada há meses, é um debate político, que nos interessa
porque ameaça a saúde de milhões de pessoas.
Os
defensores dos medicamentos que mencionei apegam-se a dois argumentos
principais. A eficácia teria sido sugerida por estudos
científicos.
É
um argumento refutável porque os estudos são sustentados em
evidência frágil, a metodologia inconsistente.
O
segundo argumento parece mais sedutor: o médico poderia prescrever com base
na autonomia médica. Gostaria de refletir sobre ele, que é de
natureza ética.
A
pergunta de fundo é a seguinte: o médico tem autonomia para prescrever o
tratamento que desejar, à revelia de protocolos, evidências e da
experiência clínica compartilhada na comunidade?
O
médico tem, afinal, autonomia para indicar um tratamento que, sem colaborar
para a cura, pode nos debilitar ou matar?
Uma
resposta simplória daria ênfase à liberdade do médico prescrever o que achar
melhor, independente de quaisquer constrangimentos, afinal de contas, fazer
um diagnóstico e tratar uma condição ou doença não é como
corrigir uma máquina que funciona invariavelmente da mesma forma.
É
na observação da condição individual do paciente e da forma como a doença
evolui nele que se define a decisão sobre um diagnóstico e seu
tratamento.
É
legítimo afirmar que há um espaço de autonomia para o médico decidir, dentro
de certas balizas, a melhor abordagem que se aplica a você.
O
problema é que, ao focar apenas na autonomia, somos induzidos a um erro de
julgamento, porque esse princípio não é irrestrito e só faz sentido quando
interpretado ao lado de outros igualmente importantes: o da beneficência e o da
não-maleficência.
O
médico tem autonomia para, esclarecido o paciente, definir um tratamento. Mas
ele tem o dever imperioso de evitar o dano (não-maleficência), prezando pela
segurança e buscando o máximo de benefício com o mínimo de risco (beneficência).
Os
princípios da não-maleficência e da beneficência só são alcançados quando há
respeito ao consenso científico. Ele é o resultado do acúmulo de evidências
postas constantemente à prova pelos pares, num rigoroso processo de revisão, e
se instrumentaliza nas políticas de saúde através dos órgãos regulatórios, que
definem protocolos para afastar abordagens diagnósticas e terapêuticas sabidamente
ineficazes.
Ignorar
o consenso para prescrever com fundamento na autonomia seria como defender que
o médico tem liberdade para matar.
Os
princípios que mencionei estão previstos no Código de Ética Médica,
mas você nem precisaria saber disso para ser convencido.
As
grandes questões éticas muitas vezes podem ser explicadas em termos simples,
com um dilema compreendido por todos, ainda que sua resposta não seja fácil.
Basta
um pouco de senso de justiça para saber que um médico não
pode, para defender o erro de um presidente, submeter o seu paciente à
negligência e à morte.
(*)
Doutora em Direito. Professora da UFC.
Fonte: Publicado In: O Povo, de 29/05/21. Opinião, p.19.
Nenhum comentário:
Postar um comentário