Meraldo Zisman (*)
Médico-Psicoterapeuta
(Humor judaico é aquele que faz graça da própria desgraça)
Atribuem ao célebre médico Sigmund Freud a
história de um mendigo que cruzou com o barão Rotschild, banqueiro afamado,
enquanto este flanava pelas ruas da Viena imperial; o mendigo aborda o altivo
homem de finanças com uma história de arrancar lágrimas ao mais calejado dos
capitalistas e consegue dele uma esmola nada desprezível.
O banqueiro continua com seu passeio
vespertino e, algumas quadras adiante, depara-se com seu beneficiado
deliciando-se com fina iguaria, dentro de uma loja de Delicatessen (estabelecimento
que comercializa alimentos e bebidas de alta qualidade, de paladar diferenciado
e sofisticado, em ambiente requintado).
Indignado com a ousadia do tipo, entra e o
increpa com dureza. E este, sem descer um grau da sua dignidade, replica: “Não compreendo a ira de Vossa Senhoria. Advoga então Vossa
Senhoria que não posso comer caviar quando não tenho dinheiro e quando tenho
dinheiro tampouco posso comer caviar?”.
José Saramago, prêmio Nobel de Literatura (1998), dizia:
“Alguns podem
até estranhar a relação do judeu com o único prêmio Nobel do meu idioma
materno. Concordo, mas meu pensamento é livre”.
(José Saramago, In: as Palavras de Saramago, registradas no livro Organização e
Seleção de Fernando Gómez Aguilera, Companhia das Letras, 2010, p. 343).
Registra em seguida Saramago o seguinte
conceito nas rádios e canais de televisão (não havia ainda os tais de meios de
comunicação social): “Cada vez
mais, somos meros atores de livros e contribuímos cada vez menos para a
formação de uma consciência”.
Como estamos em pleno estado de pandemia
mundial será que existe mesmo um humor judaico? Sim, ele existe e faz graça da
própria desgraça.
A técnica foi aperfeiçoada por anos e anos
de perseguições, tendo nascido no século XIX, nos shtetls, palavra em iídiche – língua falada pelos judeus da
Europa Oriental – que designava os miseráveis povoados, vilas ou aldeias
daquela região, aonde se lhes permitia morar. O shtetl surgiu
como resultado de dois processos intimamente relacionados: primeiro, a exclusão
social dos judeus e a permissão de sua permanência apenas em determinadas áreas
(conhecidas como Zonas de Residências Judaicas), como parte da restrição dos
seus direitos, como o de circulação nas cidades, o de exercer cargos no governo
e a posse de campos de cultivo. Desse modo, eles foram concentrados,
discriminados e forçados a passar por grave pauperização. Esta situação foi
criada pelo ‘czar’ Nicolau I (1796-18 55), e mantida pelos ‘czares’, Alexandre
II, Alexandre III e Nicolau II (1868-1918), o último ‘czar’ que imperou na
Rússia.
Vale salientar que o confinamento dos judeus
nas Zonas de Residências Judaicas facilitou a política nazista da chamada
Solução Final da Questão Judaica (Endlösung der Judenfrag), que culminou com o Holocausto; segundo, os judeus,
assim como outros povos discriminados, se voltaram para suas crenças
ancestrais, endogâmicas e fechadas em relação à maioria da população dos países
onde habitavam. Além disso, para conservar o equilíbrio mental, bem como as
defesas psicossociais, eles criaram o “humorismo da desgraça”, passando a
produzir humor sobre a situação em que viviam. O denominado humor judaico foi
(e continua sendo) adubado pela estranha parceria sadomasoquista entre
torturador e torturado. Quem pesquisar o caráter desse humor de forma mais
aprofundada não poderá negar que ele representa uma tentativa (embora frustrada)
de angariar muitas gargalhadas à custa da própria dignidade humana. É
interessante observar que tal espírito judaico, surgido originalmente nos shtetls da
Europa Oriental, migrou para os Estados Unidos, levado por levas de judeus
escorraçados de seus países de origem e se adaptou à cultura e à língua
americana do Norte.
E esses imigrantes se inspiraram na vida
dura e cruel que seus antepassados tiveram, ao habitar nas remotas aldeias da
Polônia, da Rússia e adjacências. Creio que a ansiedade foi se tornando
crescente, na tentativa de se adaptarem ao modelo de referência da maioria da
população da nova Pátria, e o humor foi se tornando mais corriqueiro,
masoquista, autodepreciativo e autocrítico.
Imaginem se isso ocorresse aqui no Brasil,
aonde a fome é endêmica e as pessoas que tem na pele alguma quantidade do
pigmento melanina são os mais vulneráveis ao ataque do vírus denominado
covid-19. A mortalidade entre os pobres é bem maior, mesmo se no início os
primeiros casos tenham ocorrido nas classes mais privilegiadas e com menor teor
de melanina, que viajam, seja qual o motivo, para fora do país. A melanina, não
custa nada lembrar e poupar algum raro leitor que chegou até aqui, é uma
substância derivada do aminoácido tirosina que contribui para a pigmentação de
determinadas partes do corpo: pele, cabelos, olhos.
O perigo da sobrevivência da Humanidade não
está nas armas ou nas honrarias, mas no coração dos Homens, que deve enfrentar
agressões, fanatismo, prepotências, excessos de zelos ou a incapacidade de
imaginar, de sonhar, de ouvir ou de rir de nós mesmos, além da ação de
preconceitos das mais diversas matizes.
Como psicoterapeuta afirmo:
“Sem humor não existe psicoterapia”.
(*) Professor Titular da Pediatria
da Universidade de Pernambuco. Psicoterapeuta. Membro da Sobrames/PE, da União
Brasileira de Escritores (UBE), da Academia Brasileira de Escritores Médicos
(ABRAMES) e da
Academia Recifense de Letras. Consultante Honorário da Universidade de Oxford
(Grã-Bretanha).
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