Esquecimento global
Dona
Tereza, já na maca, a caminho do centro cirúrgico. Será submetida a uma
artroplastia do joelho direito. Prótese total, para estabilizar a articulação
da quengada região da perna. De logo a enfermeira mira a boca da paciente e
pede gentil:
-
As próteses, por favor, é procedimento de rotina numa operação.
-
Prótese? Pergunte ao traumatologista, ele que falou que ia botar uma no meu
joelho.
A
moça se referia, claro, à prótese dentária da setuagenária. "Sem
ela", reclamava, sentia-se nua. "Prefiro morrer a me verem
banguela". Mas, tantos foram os pedidos que, ao cruzar a porta do centro
cirúrgico, Teresa decide ceder - ou fazer que cedia. Chama a filha Malu,
acompanhante sempre bem mandada, e põe-lhe algo na mão.
-
Tome aqui! Segure firme! Só abra essa mão quando terminar tudo! Não abra a mão!
A
operação é um sucesso. Ao deixar o centro cirúrgico, contudo - ainda grogue da
anestesia, pano escondendo a boca supostamente murcha, dona Teresa indaga da
dentadura. Ninguém sabe, ninguém viu. Enfermeira diz que a ela não foi
entregue. A pós-cirurgiada faz finca-pé, não vai pra enfermaria com a bocarra
desprotegida.
-
Quero meus dentes! E quero e quero logo! Chamem minha filha aqui!
Malu
chega vexada. É informada da situação, diz não saber do paradeiro da dentadura
da mãezinha. Teresa berra pelos "postiços" que lhe servem na
mastigação. É quando sem querer espirra e... ploooooft! A chapa superior salta
de sua boca e vai bater nos pés do diretor do hospital. "Que é isso,
mamãe?", grita Malu. Teresa, toda errada...
-
Foi mal, Malu. Lembrei agora do migué que dei quando eu ia entrando pra ser
operada...
-
Mamãe!!! A tampa duma caneta?!?
Num sei que, num sei que mais lá
Jr.
Barbosa, mais culto rábula que deu o Campo do Pio. Verbo fluente, deixava
qualquer abestado babando. Falatório monstro, pouco compreensível. Quanto mais
expunha, mais se empolgava. Caviloso. Do outro lado, tinha lá um Zé Barbante,
notório pedreiro, chegado a uma pôde, poucas letras, ele que levantou a casa de
muita gente boa no bairro. Entre as construções que ergueu, a do próprio
Barbosa, de esquina, na sombra. E é sobre essa casa que vamos falar.
Rebocado
o último metro de parede, o falastrão advogado intima o pedreiro a comemorar o
novo teto. Onde? Na bodega do Liberato, tudo por conta do Jr.. Que sobe no
balcão e dispara conversa fiada contra um Zé indefeso: "Queria te
enaltecer, humilde servente, pela construção há pouco conclusa, com semântica
menos complexa. Como as não tenho em meu vernáculo, digo-te o seguinte, José
Fio de Atar, ou melhor, Zé Barbante. Do teu labor, nobilíssimo executor de
tarefas da construção civil, ali está o meu habitat, edificado com a argamassa
da tua laboriosa sudorese. Incansável na colocação de cada bloco de barro
cozido ali fincado, és tu um tijolo em nossas vidas. Neste ato solene, aqui na
quitanda do Liberato, quero dizer-te a plenos pulmões: valeu, companheiro! E
receba, mesmo ao longe, meu amplexo fraterno como a paga-mor que um serviçal da
tua estirpe poderia ter deste causídico. Tenho dito".
Jr.
Barbosa desce do balcão. Se rindo de contentamento pelo inflamado discurso,
olho no olho do humilde Zé Barbante, quer ver se abafou:
-
Gostou da exposição?
A
resposta do humilde rapaz não poderia ser mais eloquente:
-
Aí dentro! Passe o dinheiro da minha impeleita antes que eu me afobe!!!
Fonte: O POVO, de 1/10/2021. Coluna “Crônicas”, de Tarcísio Matos. p.2.
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