quinta-feira, 18 de novembro de 2021

SAÚDE MENTAL E DEMOCRACIA

Por José Jackson Coelho Sampaio (*)

O filósofo Theodor Adorno, expoente da Escola de Frankfurt, tinha uma pergunta dolorosa a fazer: como o povo alemão, criador de um projeto civilizacional e de obras de alta cultura, deixou-se envolver pelo populismo anti-iluminista, anti-intelectual, racista, violento e cruel do nazismo? Grande parte de sua obra tenta responder esta pergunta. Destaque-se "A Personalidade Autoritária" que propõe, por tese, que a consciência busca unidade em meio aos fragmentos do mundo objetivo. Mas, sua pesquisa resultou na constatação da reprodução subjetiva da fragmentação objetiva.

Se uma pessoa era afetiva, tolerante e inclusiva em seu trabalho e em sua família, ela também o seria na rede social externa, nas escolhas políticas e no exercício do poder. Mas, dilacerados, o que construímos para suturar as diferenças e contradições é, no plano externo, a frágil casca de ovo da democracia, e, no plano interno, a luz fugaz que chamamos saúde mental. Democracia e saúde mental precisam uma da outra para o interpontenciamento.

Em escritos autobiográficos (ex.: "Eremita em Paris"), Ítalo Calvino, romancista italiano, expõe tentativas de compreender o drama de uma geração posta diante da aliança com o stalinismo para combater o nazifascismo, sobretudo na Itália, sob a ditadura de Mussolini. Parece ser da natureza das nacional-demagogias e dos autoritarismos estreitar as possibilidades de opção até restar a bipolaridade, mais ainda, mutatis mutandis, quando encontra cultura patrimonialista, corporativa e escravista adubada pelos séculos.

Uma geração desconstrói ditadura militar, outra geração se beneficia dos acúmulos de direitos democráticos, uma geração vinda das sombras assume a desconstrução dos ganhos democráticos. Como diz Calvino: "a escassa eficácia da transmissibilidade da experiência é desanimadora", e, "não há como impedir uma geração de tapar os olhos", pois "a história continua a ser movida por impulsos não (...) dominados, por convicções parciais e não claras, por escolhas que não são escolhas, por necessidades que não são necessidades."

O Brasil precisa dar o exemplo de como podemos escapar desta armadilha histórica, a despeito de tão pouca experiência democrática e do fascínio segregacionista que ainda informa nossa experiência social da saúde mental. 

(*) Professor titular de Saúde Pública e ex-Reitor da Uece.

Fonte: Publicado In: O Povo, de 5/11/2021. Opinião. p.18.

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