segunda-feira, 4 de abril de 2022

CARNAVAL SEM CARNAVAL

Por Sofia Lerche Vieira (*)

Cada geração tem suas memórias. Cada indivíduo seus recortes mágicos, ressignificados pelo presente. Se visito lembranças do passado, minha imagem mais antiga de carnaval remete a uma menina vestida de tirolesa, traje comum no singelo acervo temático das fantasias de então. Em meio à festa, um aroma embriagador deixava um rastro no ar. Antes de banido, o lança-perfume era presença indispensável até mesmo nas festinhas infantis. Em um salto no tempo, a memória faz aflorar a euforia dos blocos adolescentes no Carnaval da Saudade. Ao amanhecer da Quarta-Feira de Cinzas, acompanhados pela banda tocando os acordes finais, os foliões desciam para um mergulho no mar da Praia do Náutico.

Quem viveu é capaz de recompor uma história que foi sendo reinventada não deixando morrer as tradições. O frevo, os blocos de rua, os maracatus, as escolas de samba, tudo isso enchia de alegria os corações brasileiros, até que a vida mudou...

Saborear esses retratos de tempos perdidos, de algum modo, aquece a alma na dureza de um segundo ano de carnaval sem carnaval. Em vez da festa, o que se vê são buscas insones pelos mortos da tragédia de Petrópolis. Sem contar as vítimas da Ômicron que seguem desafiando as estatísticas. No panorama internacional, a invasão da Ucrânia pela Rússia desperta assombro e temor de uma 3ª Guerra Mundial.

Em meio à volatilidade dos acontecimentos, o que antes parecia ter graça ficou fora de ordem, a exemplo do desfile do bloco "Não Adianta Ficar Putin" interrompido pela Guarda Municipal nas ruas do centro do Rio de Janeiro dias antes da eclosão do conflito no Leste Europeu. É fato que a despeito do desânimo coletivo, uma infinidade de pequenas transgressões contra proibições de aglomerar invade as ruas das cidades. Anônimos foliões e bloquinhos colorem um fevereiro soturno e cinza.

Se festas que buscam reeditar outros carnavais insistem em se fazer presentes, o espírito momino parece ter se esvaído com os ares trazidos pela pandemia e aprofundados pela guerra. Sem a folia geral, o Brasil segue mal-humorado e agressivo. A vida, a cada dia, mais pobre e triste.

(*) Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Uece e consultora da FGV-RJ.

Fonte: Publicado In: O Povo, de 28/02/22. Opinião, p.20.

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