Por Sofia
Lerche Vieira (*)
Cada geração tem suas memórias. Cada indivíduo seus
recortes mágicos, ressignificados pelo presente. Se visito lembranças do
passado, minha imagem mais antiga de carnaval remete a uma menina vestida de
tirolesa, traje comum no singelo acervo temático das fantasias de então. Em
meio à festa, um aroma embriagador deixava um rastro no ar. Antes de banido, o
lança-perfume era presença indispensável até mesmo nas festinhas infantis. Em
um salto no tempo, a memória faz aflorar a euforia dos blocos adolescentes no
Carnaval da Saudade. Ao amanhecer da Quarta-Feira de Cinzas, acompanhados pela
banda tocando os acordes finais, os foliões desciam para um mergulho no mar da
Praia do Náutico.
Quem viveu é capaz de recompor uma história que foi
sendo reinventada não deixando morrer as tradições. O frevo, os blocos de rua,
os maracatus, as escolas de samba, tudo isso enchia de alegria os corações
brasileiros, até que a vida mudou...
Saborear esses retratos de tempos perdidos, de algum
modo, aquece a alma na dureza de um segundo ano de carnaval sem carnaval. Em
vez da festa, o que se vê são buscas insones pelos mortos da tragédia de
Petrópolis. Sem contar as vítimas da Ômicron que seguem desafiando as
estatísticas. No panorama internacional, a invasão da Ucrânia pela Rússia
desperta assombro e temor de uma 3ª Guerra Mundial.
Em meio à volatilidade dos acontecimentos, o que
antes parecia ter graça ficou fora de ordem, a exemplo do desfile do bloco
"Não Adianta Ficar Putin" interrompido pela Guarda Municipal nas ruas
do centro do Rio de Janeiro dias antes da eclosão do conflito no Leste Europeu.
É fato que a despeito do desânimo coletivo, uma infinidade de pequenas
transgressões contra proibições de aglomerar invade as ruas das cidades.
Anônimos foliões e bloquinhos colorem um fevereiro soturno e cinza.
Se festas que buscam reeditar outros carnavais
insistem em se fazer presentes, o espírito momino parece ter se esvaído com os
ares trazidos pela pandemia e aprofundados pela guerra. Sem a folia geral, o
Brasil segue mal-humorado e agressivo. A vida, a cada dia, mais pobre e triste.
(*)
Professora do Programa de Pós-Graduação
em Educação da Uece e consultora da FGV-RJ.
Fonte: Publicado In: O Povo, de 28/02/22. Opinião, p.20.
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