Por Ana Miranda
(*)
Nos anos em que morei na Prainha, passava
diante do Mercado de Carnes na mimosa Aquiraz e achava bonito o prédio antigo,
cheio de portas. Era meio abandonado, mas de repente ganhava um restauro. Eu
ficava admirada de ele estar inteiro, ao lado de tantas casas desfiguradas por
ladrilhos e grades. Ouvi um morador da cidade reclamando da
"velharia" que precisava ser derrubada. Um dia fui com meu amigo, o
arquiteto Ricardo Bezerra, comprar umas roscas que um senhor fazia ali ao lado
e fiquei sabendo que o Mercado era tombado pelo Patrimônio Nacional, por ação
do professor Liberal de Castro.
E não apenas o Mercado estava intacto por obra
desse mestre da arquitetura. Também o Theatro José de Alencar. E o teatro São
João, em Sobral. E a casa onde nasceu José de Alencar, no Alagadiço Novo. Antes
de vir morar no Ceará eu já conhecia de nome o arquiteto Liberal de Castro. Foi
um encanto ver pessoalmente sua figura luminosa e reverenciada. Sentamos lado a
lado em duas ocasiões, quando pude ouvir suas palavras, seu pensamento
inovador, sua sabedoria e solidez política. Como todo bom professor, ele
gostava de falar. As memórias que trazia do Rio de Janeiro eram de convivência
com Lucio Costa, Sérgio Bernardes, Reidy, Burle Marx. Conheceu o poeta
Drummond, que trabalhava mesa a mesa com Lucio Costa e o inspirava
poeticamente. O que Liberal de Castro testemunhou em sua geração de arquitetos
era um verdadeiro avanço de mentalidade. Seu nome é profético: José Liberal. E
castros eram antigas povoações fortificadas.
Tesouros são seus estudos, preocupados com a
memória. São referência sobre a arquitetura antiga do Ceará. Li sobre a igreja
matriz em Viçosa, que me toca o coração por saber que por ali pisaram os pés
descalços do padre Vieira, no século 17; sobre o ecletismo da arquitetura
cearense, sobre estátuas do nosso Passeio Público; o livro Ah, Fortaleza, que
guardo com carinho, e algo mais. Tudo o que ele escreveu é fonte de
conhecimento para o Ceará - e fonte literária para meus livros, minhas
crônicas. Sou sua admiradora e sempre lhe serei grata. Todos nós, cearenses,
lhe seremos gratos. Ele nos tornou melhores.
Não havia escola de arquitetura no Ceará, só de
engenharia. Ao criar, com um grupo de arquitetos, a escola de arquitetura da
UFC, Liberal de Castro abriu as possibilidades de nosso estado. Modernizou-nos.
Foi um trabalho tão bem formulado que, poucos anos depois, alunos receberam
medalha de ouro na Bienal de São Paulo. Com seus conhecimentos, sua generosa
atuação, sua visão ampla e profunda, Liberal de Castro incluiu o Ceará no cânon
nacional da arquitetura. E mudou o destino de nossa cidade. Ali está o Castelão
para nos alegrar. Ali estão edifícios novos da universidade, pensados com
delicadeza e o respeito à História de quem a conhece tão bem. E escolas,
hospitais, casas de pessoas com mente aberta, como o professor Eduardo Diatahy.
Ouvi de Bete Dias: a sensação é de que uma
biblioteca desapareceu. Uma maravilhosa biblioteca. Liberal de Castro é uma
dessas raras pessoas que, quando partem, levam consigo todo um tempo.
(*) Escritora. Colunista de O Povo.
Fonte: Publicado In: O Povo, de 18/09/22. Vida & Arte, p.2.
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