sábado, 17 de setembro de 2022

AH, FORTALEZA! LIBERAL DE CASTRO

Por Ana Miranda (*)

Nos anos em que morei na Prainha, passava diante do Mercado de Carnes na mimosa Aquiraz e achava bonito o prédio antigo, cheio de portas. Era meio abandonado, mas de repente ganhava um restauro. Eu ficava admirada de ele estar inteiro, ao lado de tantas casas desfiguradas por ladrilhos e grades. Ouvi um morador da cidade reclamando da "velharia" que precisava ser derrubada. Um dia fui com meu amigo, o arquiteto Ricardo Bezerra, comprar umas roscas que um senhor fazia ali ao lado e fiquei sabendo que o Mercado era tombado pelo Patrimônio Nacional, por ação do professor Liberal de Castro.

E não apenas o Mercado estava intacto por obra desse mestre da arquitetura. Também o Theatro José de Alencar. E o teatro São João, em Sobral. E a casa onde nasceu José de Alencar, no Alagadiço Novo. Antes de vir morar no Ceará eu já conhecia de nome o arquiteto Liberal de Castro. Foi um encanto ver pessoalmente sua figura luminosa e reverenciada. Sentamos lado a lado em duas ocasiões, quando pude ouvir suas palavras, seu pensamento inovador, sua sabedoria e solidez política. Como todo bom professor, ele gostava de falar. As memórias que trazia do Rio de Janeiro eram de convivência com Lucio Costa, Sérgio Bernardes, Reidy, Burle Marx. Conheceu o poeta Drummond, que trabalhava mesa a mesa com Lucio Costa e o inspirava poeticamente. O que Liberal de Castro testemunhou em sua geração de arquitetos era um verdadeiro avanço de mentalidade. Seu nome é profético: José Liberal. E castros eram antigas povoações fortificadas.

Tesouros são seus estudos, preocupados com a memória. São referência sobre a arquitetura antiga do Ceará. Li sobre a igreja matriz em Viçosa, que me toca o coração por saber que por ali pisaram os pés descalços do padre Vieira, no século 17; sobre o ecletismo da arquitetura cearense, sobre estátuas do nosso Passeio Público; o livro Ah, Fortaleza, que guardo com carinho, e algo mais. Tudo o que ele escreveu é fonte de conhecimento para o Ceará - e fonte literária para meus livros, minhas crônicas. Sou sua admiradora e sempre lhe serei grata. Todos nós, cearenses, lhe seremos gratos. Ele nos tornou melhores.

Não havia escola de arquitetura no Ceará, só de engenharia. Ao criar, com um grupo de arquitetos, a escola de arquitetura da UFC, Liberal de Castro abriu as possibilidades de nosso estado. Modernizou-nos. Foi um trabalho tão bem formulado que, poucos anos depois, alunos receberam medalha de ouro na Bienal de São Paulo. Com seus conhecimentos, sua generosa atuação, sua visão ampla e profunda, Liberal de Castro incluiu o Ceará no cânon nacional da arquitetura. E mudou o destino de nossa cidade. Ali está o Castelão para nos alegrar. Ali estão edifícios novos da universidade, pensados com delicadeza e o respeito à História de quem a conhece tão bem. E escolas, hospitais, casas de pessoas com mente aberta, como o professor Eduardo Diatahy.

Ouvi de Bete Dias: a sensação é de que uma biblioteca desapareceu. Uma maravilhosa biblioteca. Liberal de Castro é uma dessas raras pessoas que, quando partem, levam consigo todo um tempo.

(*) Escritora. Colunista de O Povo.

Fonte: Publicado In: O Povo, de 18/09/22. Vida & Arte, p.2.


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