domingo, 30 de abril de 2023

BISU (OU BIZU) II*

Por Dalgimar Beserra de Menezes

Outra história é a do bizu verdadeiro. El bizu de verdad. De minha própria memória, me transporto ao ano de 1962 (ou 1963?). Não se deve confiar na memória. É sempre construção. Estou às portas de uma grande sala de aula no antigo Instituto Evandro Chagas, também demolido, e vejo chegar pressuroso, exultante e alegre, um colega meu de turma, alcunhado de Barão. Era o Antônio Eurípedes. Ele não se contém:

 Saiu o bizu da prova de Física.

Dito isso, prá quê? É logo cercado. Quero ver, dizia um. Deixa eu ver, outro dizia. Então ele arrancou uma papeleta do bolso, um pedacinho reles de papel amarfanhado, onde se podia ler:

1ª Questão: Tensão Superficial.

2ª Questão. A Bomba de Cobalto.

Não vão querer os meus leitores que eu me lembre de todas as questões, que já lá vão 38 anos. Porém eu as copiei para checar. Era uma manhãzinha ensolarada. E a prova seria feita na tarde do mesmo dia.

Entramos na velha sala já referida para o bizu absoluto do professor Tomé, que era o local da realização da prova bizurada (existe isso?) da disciplina de Physica Medica. Era physica mesmo e não física. O autor do texto adotado, Ney Cabral, insurgia-se contra a reforma ortográfica de 1943, de modo semelhante a José Saramago que exige que seus livros publicados no Brasil portem a ortografia de Portugal. Idiossincrasias. Mas vamos lá. Todo de branco, ele próprio muito branco, distribuindo simpatia, vai o professor à frente do quadro negro acompanhado de seu assistente, e manda que ele escreva no quadro: Primeira Questão: Tensão Superficial Segunda Questão: A Bomba de Cobalto. Terceira Questão…

De novo não vão querer meus poucos leitores que eu me lembre de todas as questões. Mas se sobrepunham completamente às do papel amassado, com escritura de tinta azul de caneta tinteiro, que o Barão apresentara naquela manhã.

Passado o impacto, risota e risinhos disfarçados à parte, um aluno que conhecia perfeitamente o bizu mas que pertencia a outro time quanto à moral e aos costumes, levantou-se e disse alto e bom som:

Professor, essa prova não pode ser dada. Muitos alunos conheciam o seu conteúdo hoje de manhã. O conteúdo da prova vazou, Professor.

O professor volveu a cabeça ao assistente e esfregando ambas as mãos

Fulano, você escutou o que o jovem lá está dizendo?

Fulano não respondeu. Como que envergonhado, porém mais propriamente com risinho de mofa, ofereceu as costas aos alunos dirigindo-se ao quadro negro.

A turma por sua vez constituiu de imediato uma espécie de assembleia. Nada mais fácil. Estavam todos reunidos. Os que dispunham do bizu, com espanto, diziam que aquilo não podia ser, que era uma espécie de imoralidade. Acusação infundada. Os que não dispunham exigiam que fosse feita outra prova.

Num instante o professor nas vestes de brancura imaculado, calças com vincos, camisa de seda, resolveu o problema criado pelo dedo-duro.

Vou fazer duas provas. Esta que está no quadro já está definida.

Quem quiser fazê-la pode começar. Vou agora fazer as questões para os descontentes, isto é, aqueles que dizem que as questões que estão no quadro já são conhecidas.

E procedeu como disse. Sabedoria salomônica, pois não?

O professor, já idoso, tinha um fraco. Gostava de cercar-se das meninas bonitas, e para elas fornecia as questões das provas, em todos os detalhes, inclusive vírgulas.

O aluno que denunciou o bizu verdadeiro, ficou com receio de perseguição, de marcação. De retaliação. Não houve. Tirou até nota excelente. Porém não se sabe qual das duas provas ele fez.

Nota 1 - De acordo com a memória do Computador este pequeno texto foi escrito no dia 16 de julho de 2000. Eu me lembro bem que um estudante de medicina mo encomendou e que lho enviei por e-mail. Seu endereço eletrônico era ou é doutorchicao@hotmail.com.

Nota 2 - Tanto quanto o termo pica-fumo, alguém assevera que tem origem na caserna. Com respeito a pica-fumo, já o encontrei em O Mulato de Aluísio Azevedo, um livro do século XIX.

Fonte: MENEZES, Dalgimar Beserra de. Bisu (ou Bizu). In: MENEZES, Dalgimar Beserra de. Apontamentos diário e eventuais. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2006. 231p. p.129-131.

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*Bizu também se chamava um jornalzinho de circulação interna na Faculdade de Medicina.


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